sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

FELIZ ANO NOVO!

 e o ano tá no fim. o que muda? olha, faz tempo que percebi que nada muda. é um dia após o outro. não se iluda. se você até hoje não deu uma virada fenomenal em sua vida, relaxe, isso é fantasia comercial. você não é nenhum extra-terrestre. simplesmente não entendeu, ainda, como as coisas funcionam. nada muda. não pergunte. não questione. nem tente achar que você é diferente. seus melhores planos são disfarces, são engodos. são estranhas possibilidades remotas de um sucesso impossível. feliz ano novo! se é que você acredita nisso... coitado... tá fudido e nem sabe ao certo a razão de ser. fudido! simplesmente fudido. quando a ficha cair, e você estiver sofrendo em carne viva e despelada, talvez, veja bem, talvez, você até possa concordar comigo. não existe nenhuma chance diante do fim.


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quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

HELENA

Completou com uma dose de whisky o último gole do café requentado e bebeu a mistura. Os olhos saltaram como espinha espremida na face. Caminhou agitado, sem saber ao certo o que fazer, ou por onde deveria começar. Recolheu as roupas abandonadas no sofá, empilhou os livros no canto da sala e limpou todos os cinzeiros espalhados estrategicamente em sua humilde residência – na verdade, um quarto de hotel, ele tentava uns bicos como porteiro nos fins de semana e em troca disto, morava no último andar, em um reservado, que não era bem um quarto, mas um espaço de depósito que fora reformado para receber o porteiro - varreu e passou pano no chão. Limpou o aquário e colocou comida para os peixes. Caçou uma barata ninja por entre as bordas do armário da cozinha e por fim, acendeu um cigarro na boca do fogão e esperou a água ferver para o próximo café. Já passava das seis e a noite mostrava a sua cara tumultuada. Ernesto era um sujeito sossegado, quase um eremita urbano, se não fosse o fato de morar com a estonteante Helena. Ele era um excelente violoncelista, mas somente na presença de Helena.  Ela era a sua fonte de inspiração e sempre o acompanhava nas noites infernais do The Club, um bar isolado na periferia da cidade, estilo americanizado, especializado em jazz. Não era qualquer um que podia frequentar aquele antro - nada disso - , as reservas eram feitas com antecedência e somente para uma lista muito seleta, havia um cassino clandestino - mas eu falava do Ernesto - o músico, que como qualquer outro músico tinha a displicência e a disciplina caminhando lado a lado - é verdade, nunca vi sujeito mais disciplinadamente distraído -, não importava para qual direção ele fosse, contanto que pudesse levar Helena em seus braços. Acordava todas as tardes com uma ressaca dos diabos e antes mesmo de levantar da cama, acendia um cigarro, fumava calmamente, encarando Helena e em seguida partia para dentro da sua fonte de inspiração. E assim ele fazia músicas belíssimas. Depois de morto de cansado, ainda enfrentava as tarefas domésticas, fazia o café – bebia misturado com whisky, lembre-se dessa passagem, pois é totalmente relevante nessa história – e se aprontava para mais uma noite no clube. E assim prosseguia o Ernesto, sem muitas alterações em sua rotina. Depois de mais uma noite ensandecida em seu trabalho, depois de mais outro porre desgraçado - desses que te deixam com a impressão no outro dia de que algum órgão seu foi retirado -, ele não acordou. E essa não foi a primeira vez que ele perdeu os sentidos completamente. Uma vez, acordou no telhado do hotel. Outra vez, acordou no vão que separa o oitavo do sétimo andar – mas eu falava do Ernesto - na tarde que antecedeu a tragédia, ele não acordou. Helena ficou paralisada - não podia fazer nada sem ele. Com certeza chegaria atrasado. E isso pode até parecer algo tão simples e contornável, mas a rotina do Ernesto incluía os atrasos diários, ele chegava bêbado no trabalho – eu sei que omiti essa informação, mas só tô tentando não piorar ainda mais a situação desse indivíduo -. Ele queria andar na linha, mas chutava o balde todas as noites e como consequência, o inevitável atraso – sem falar que ele atravessava direto nas canções - e o seu chefe, um colombiano estúpido e cheio de si, já havia batido o martelo – se amanhã for chegar atrasado, nem coloque a cara no meu estabelecimento, assim ele disse, invocado, puto dentro das calças, falou bem alto para todo mundo ouvir, coisa que nunca fazia, sempre chamava o funcionário no canto e passava o sabão na criatura. Diante de tantas testemunhas, o Ernesto sentiu a corda bem apertada em seu pescoço. Depois de sua apresentação decidiu não beber mais uma gota de álcool. Estava decidido a voltar para casa mais cedo, descansar como os outros mortais e levantar no outro dia mais inteiro. Precisava tomar uma atitude mais que urgente. A sua existência e a de Helena dependiam de uma mudança radical em sua vida. Mas, como disse anteriormente, o Ernesto bebia – bebia! – e toda essa narrativa que caminhava para um desfecho sensacional, típico padrão social, o politicamente correto, dessas em que o cidadão pensa que caga cheiroso – e eu falo do Ernesto –, por mais que os fatos nos iludam com resultados não planejados, na verdade, a vida é premeditada e tudo aquilo que sempre pensamos ser está muito distante do que é a realidade. Se eu não tivesse começado essa história teria desistido imediatamente de contá-la, mas nesse fatídico dia o Ernesto acordou com o relógio cravado as dez. - Tinha bebido um dia antes - . Quando chegou em casa na última madrugada, não resistiu e caiu de cabeça em uma garrafa de whisky. O pior de tudo, não era a sensação de desorientação e nem mesmo aquela ânsia contínua, que nunca chega as vias de fato. Ele não tinha muito mais tempo para perder e a sensação da corda sufocando a sua goela aumentava a cada minuto que se passava. Ele pegou as chaves de casa, a capa de chuva e colocou Helena nos braços. Dirigiu-se ao elevador e pacientemente esperou. Demorou um bocado a resposta. Acendeu um cigarro e ficou observando a chuva entrar pela janela e avançar o corredor. Acariciou Helena por uns instantes, nervoso, de um jeito assim bem explícito. Resolveu zarpar pelas escadas e isso não seria um problema se não estivesse acompanhado - ela era um pouco pesada, ia demorar demais para descer - quando estavam atracados, parados, a coisa rolava que era uma beleza. Helena gemia barulhos infernais. Deixava qualquer um enlouquecido. Era tudo que ele queria na vida. Depois de muito sufoco e cuidado para não machucá-la, ganhou a rua. Ele não tinha carro e o clube não ficava assim tão próximo de sua casa. Precisava de um táxi com a máxima urgência de uma grávida desesperada com a bolsa estourada em plena calçada. As horas brincavam com os restos de sua paciência. Apertou-se com Helena no banco de trás do veículo que mandaram do céu - ele não podia perder aquele trabalho - e não perdeu. Chegaram no topo da hora. A casa lotada. Gente saindo pelo ladrão. Fumaça por todos os cantos. Um clima desastrosamente apreensivo invadiu o seu peito. Todos estavam presentes. Ele e Helena dirigiram-se ao palco. A banda já estava por lá. Ele despiu sua dama. Apoiou-a em suas pernas - um calor demoníaco – e meteu a vara sem a menor cerimônia na frente de todas as caras que ansiavam o pior - nas horas de maior sufoco em que estamos equilibrados em um mísero fio de cabelo, a natureza humana sempre deseja que desgraça maior nos aconteça – mas Helena gemeu sem parar - . Ele arrancou barulhos incríveis de sua amada, deixando o público perplexo diante de tamanho êxtase proporcionado. Foi algo instantâneo, espiritual, uma explosão de harmonia – se é que você me entende - eles levaram a platéia ao delírio. Chegaram em casa pela manhã. Aos tropeços. Ele, bebaço como sempre. Ela, carregada, em silêncio. Ernesto jogou o seu violoncelo na cama, a Helena – assim ele chamava seu instrumento de trabalho – alcançou um punhado de comprimidos no criado-mudo e enfiou tudo goela abaixo com a única dose que o esperava na garrafa. Dessa vez ele apagou como a linda Monroe.


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quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

LENDA URBANA


Eu nem sei ao certo se deveria contar essa história. É tudo tão rápido e incerto. Confuso e ridículo. E não confesso aqui noites embriagadas. Não. Embora o álcool esteja sempre presente, como uma mosca porca e maldita que não se afasta nunca dos restos esquecidos. O que me apavora o sono, nesse instante, é o que me motiva a insistir nessas linhas velozes e sem sentido, é o que pode me deixar inquieto logo na primeira hora após a oração de entrega do dia, não que eu seja católico, mas preciso continuar a escrita, como uma reza ligeira, que talvez espante tudo aquilo que eu vou tentar te contar. Escrevo sobre o exato momento em que não se tem mais o controle de nada – nem sei se tenho isso antes – quando a sorte ou azar estão por conta própria. Escrevo agora. O fato é que desde criança fui mal acostumado a dormir com a luz acesa do quarto. Naquela época, meus pais colocavam uma cabeça sinistra e avermelhada para iluminar o canto de minha cama. Eles pensavam que aquilo podia me acalmar. E eu dormia. Sim, eu dormia anestesiado diante de tanto horror. Aquela imagem sem voz, presente, sempre alerta e tomando conta completamente do meu ambiente. Tinha vezes que a cabeça tremia, acho que eram insetos sem noção, que buscavam refúgio no calor de sua futura morte colorida - e assim eu disfarçava. Triste. E inevitável. Horrível. Bom, hoje, eu só durmo com a televisão ligada. E faz tempo que não sei o que é o sono voluntário. Eu simplesmente adormeço diante de qualquer programação. Ontem, veja bem, só escrevo essas linhas porque está tudo tão próximo. São poucos instantes diante do ocorrido e confesso que nem sei se estarei vivo na próxima noite. Nem sei se termino. E já prevendo o pior, penso em deixar esse testemunho incrível guardado embaixo da cama do quarto dos fundos. O que não tem televisão. E bonequinhos rubros sorridentes. Lá, a noite parece ter fim. Talvez eu consiga. - Calma! Não tô rodeando como um escritor de carreira, que deseja prender a atenção e vender seus escritos na primeira esquina - Eu preciso que você preste muita atenção! - E depois que estiver lido e percebido, eu estarei, seja lá onde, satisfeito por ter conseguido te alertar do perigo. – nem pense que eu tentei rimar numa hora dessas – mas vamos aos fatos. Eu ontem deitei com a tv ligada – já passam das quatro, eu acho. Eu sempre faço isso, já disse. Fiz um lanche leve. Pão com ovo, presunto, tomate e alface para disfarçar. E suco com gelo para amenizar o imenso calor que tem feito nesses dias loucos de verão. Depois da larica, guardei a bandeja, lavei o copo e o prato e voltei para a cama. Assim que encostei minha cabeça no travesseiro, falhou a energia. – falhou! - Não faltou como de costume - ela falhou porra! - Foi só uma piscadela de olhos. Tão rápido como um ataque cardíaco fulminante. – você tinha que ter visto! O suficiente para me deixar sentado, num pulo, na beira da cama. Inerte. A tela voltou aos chuviscos. Chuviscos e barulhos irritantes de chuviscos. Você deve saber como é. Bati de leve na tv e nada. Aliás, nada não, o inquietante barulho aumentou. Bati novamente na esperança de que tudo voltasse ao normal, mas foi em vão. O angustiante som parecia não ter mais fim. Na sequência, eu não sei explicar porque razão, mas mesmo certo de minhas faculdades mentais intactas – penso eu – paralisei diante da imagem chuviscada do aparelho. Nesse exato momento, veja bem, se eu ainda escrevo esse relato é porque imagino que tive alguma autorização, sei lá de quem, para continuar com a contação e talvez, nada do que eu tenha escrito foi de fato o ocorrido, tendo em vista que a vida é a manipulação dos fenômenos. Você acredita em seres extraterrestres? E em situações paranormais? Jesus? Naves espaciais? Espíritos? Você acredita em Deus? Eu confesso que creio em muitas coisas quando a minha carteira está abarrotada e quando tudo está prestes a desabar em minha vida. Quando eu era criança, fui muito amedrontado por diversas lendas urbanas, dessas de mulher do saco e loira do banheiro, que sempre me meteram o maior pavor, mas a ideia de que se deixássemos a tv só no chuvisco seria a porta de entrada para seres de outras dimensões, essa eu nunca acreditei. Até bem pouco. – mas eu vi! Antes de continuar, lembre-se que isto é apenas um relato desesperado e corrido e que você está livre para acreditar ou não. – mas eu vi! – eu sei muito bem o que vi. Eu estava paralisado na frente da tv, faz pouco tempo, logo após o apagão instantâneo. Fiquei grudado na tela e ouvi. E em seguida eu vi. Primeiro eram sussurros, que não sei explicar se eram de outra língua, mas com certeza eu não compreendi nada do que dizia. Ou diziam. Da nossa língua, com certeza não era. Fiquei extasiado. – e continuo a escrita por pensar que ainda me resta algum tempo. – os chuviscos estão visíveis! - Sombras, imagens desfocadas, rostos esquisitos vindo em minha direção. - que porra é essa?


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- dá um jeito nessa antena, mané, falei pra não comprar essa merda de segunda mão...
- já fiz de tudo e essa bosta só fica no chuvisco...
- que porra é essa!






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terça-feira, 13 de dezembro de 2011

JESUS SE FUDEU NESSA HISTÓRIA

Jesus casou-se cedo demais. Não percebeu a peça que o destino lhe pregara. Vindo de uma família pobre, sem muitas oportunidades, seguiu os passos do patriarca. Aos 66 já alcançava a incrível marca de 12 rebentos, ficando atrás de seu falecido pai em apenas oito cabeças. Aposentou-se, também, como pedreiro, mas ainda realizava alguns pequenos trabalhos pelo bairro. Temia sentir a terrível sensação de improdutividade nas costas e mesmo quando não tinha serviço, andava pelas ruas, conversava com um e com outro, mantinha a mente ocupada dividindo suas experiências de vida, principalmente com os mais novos. A soma que recebia mensalmente não era lá grandes coisas. Ajuda dos filhos não tinha. Nem mesmo dos cinco que se casaram, desses só recebia um telefonema a cada seis meses. Um dia, desesperado e com as contas gritando penduradas na porta da geladeira, caiu nas mãos de um agiota e nunca mais se viu livre do usurário. Ficou íntimo do urubu, assim o chamavam. Um sujeito sem feições atraentes. Um tremendo filho da puta, que não perdoava o atrasado nem mesmo de sua pobre mãezinha paraplégica e cega. Pegou o péssimo hábito de frequentar uma vez por semana a casa do tal truculento. Levava biscoitinhos nos finais das tardes. O agiota, malandro que era, tinha sempre um café forte na térmica da pia para acompanhar a meiguice do trouxa. A cortesia fazia parte do esquema. Conversavam por horas. O devedor nunca pagava o saldo completo de sua dívida, e assim, acumulavam-se juros. No final das contas, Jesus sempre conseguia o seu trocado emprestado, mas deixava grande parte para abater a dívida e saía com os restos que mal davam para afastar a ideia de um próximo empréstimo. E assim, sem nem respirar, viveu durante muito tempo. Depois de anos nessa cachaça e preocupado com os seus herdeiros miseráveis, caiu na lábia de um vendedor de seguros. Uma apólice que prometia uma grana altíssima, caso ele falecesse de morte natural. Era a chance de resolver a vida de sua família. Morreria honrado, sabendo que deixaria a mulher e os filhos com o boi na sombra. Finalmente sentiu uma ponta de esperança no coração, que quase foi para o beleléu quando viu o valor do prêmio do segurado.
- mas é bem mais que todo o dinheiro que eu já ganhei na vida multiplicado por seis!
- e tudo isso por apenas essa módica importância mensal, que o cidadão não vai nem mesmo sentir sair de seu bolso. Um verdadeiro investimento digno de alguém que se preocupa realmente com os seus familiares. Lembre-se que Tudo é possível àquele que crê!
Assim desenrolou o vendedor e ainda com o gosto do veneno na boca e a manha dos gestos, empurrou a apólice goela abaixo de sua vítima. O pedreiro a escondeu embaixo do estrado da cama. Um segredo de estado descoberto por sua segunda mulher numa faxina geral de quinta. Uma verdadeira vigarista, uma puta de beira de estrada que Jesus acolheu em seu lar. Deu casa, comida, roupa lavada e a desalmada, depois do primeiro ano, só comparecia para a procriação. Ela tinha 51 e apesar do corpo revelar algumas marcas de uma vida exausta e cruel, disfarçava muito bem com os produtos Avon e Natura que comprava em 12 vezes de uma colega de muro. Com a apólice em suas mãos, a mulher começou a ter sonhos de riquezas. Não tirava mais o valor da bolada de sua cabeça. Passou a ver seu marido apenas como um prazo de validade. Um pequeno detalhe para a sua virada total. Rapidamente imaginou um incrível plano. Acreditava que se o marido começasse a viver como nunca, rapidamente empacotaria diante do novo ritmo alucinante de vida. Ele estranhou a mudança de comportamento da patroa. Sua mulher estava mais amável. Defendia a ausência dos remédios que ele tanto detestava. E depois que ela passou a misturar as balinhas azuis no meio de sua refeição, o coroa recuperou o vigor sexual desaparecido com as preocupações excessivas da vida. Era só esbarrar na mulher que o bicho pegava geral. Mas o plano da esposa foi por água abaixo. O aposentado ficou esperto demais. Não dava mais sossego para sua companheira, que era surpreendida, também nas madrugadas, com as cutucadas nervosas do marido robusto por debaixo do lençol. A coitada não conseguia mais sonhar. Aos poucos foi se sentindo enfraquecida e por um momento percebeu que talvez empacotasse primeiro que ele se continuasse naquele ritmo. Levantou-se em uma manhã determinada a por um fim em sua tragédia. Fez um café delicioso para o marido. Torradas com manteiga, frutas, bolo de fubá e até ovos mexidos. Tudo regado com bastante estricnina. O revigorado cavalheiro não tinha mais boca para tantos sorrisos. Sentou-se à mesa, olhou bem nos olhos da mulher e arrotando tesão, disse:
- me aguarde, sua cachorra!
Em seguida, comeu tudo o que tinha direito e após terminar sua primeira xícara de café, estrebuchou para o lado com as mãos na barriga, fechando-se no chão como uma taturana indefesa. A mais nova ricaça do pedaço comprou uma rede de Postos de Gasolina, internou os menores em um colégio na Europa e foi gozar a vida com dois rapazes de 20 em uma praia do Caribe.


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sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

CAMINHADA ESPIRITUAL

Pulou do coletivo aos gritos. Não tinha dinheiro para a passagem, mas também não precisavam tratá-lo com tamanha grosseria. Caminhou sob um sol de rachar pelo centro da cidade, o sapato furado bem na ponta do dedão incomodava muito os seus passos. Distraiu-se em meio aos camelôs e já havia até esquecido o ocorrido. Não era de guardar ressentimentos por mais de cinco minutos. Foi o tempo de um cigarro sentado à sombra de um cajueiro, observando a rotina da rua. No fundo, queria apenas se deslocar sem rumo. E o pensamento, às vezes, o levava a caminhos mais físicos. Se pudesse não pensar, seria ótimo, mas não conseguia atingir tal proeza. Nunca desejou ser um monge zen e muito menos coroinha de Igrejas que arrancavam todas as suas vontades com falsas promessas de um mundo melhor. Desconfiava de tais excessos absurdos e não era ligado em nenhuma religião. Duvidava de crenças com discursos estapafúrdios, fundamentados em proibições desnecessárias, o alimento das almas sem direção. Mesmo assim, ele sabia que precisava seguir um caminho espiritual. Ou pelo menos acreditar em algo que servisse de freio aos seus desejos mais obscuros. Essa era uma regra social herdada que não lhe deixava muitas opções. Mas nunca foi convicto em nada. Para se ter uma ideia, no futebol, torcia pelo time que o mais fanático da esquina estivesse bancando a gelada. Mesmo assim, visitou diversas igrejas capitalistas, passou por seitas malucas, conversou com pastores pilantras, os pseudo-arrependidos de um passado cabuloso, de orgias, drogas e muitos pecados capitais. E mesmo sem perceber, continuava a sua peregrinação em busca da paz almejada. Um valor inerente ao ser humano. Ou uma armadilha do desejoso tumulto contínuo que ansiava sua alma. Sabia que só avançava alguns passos após um tremendo rebuliço em sua vida. E assim seguia. Sem muitos planos. Apenas os dias e as noites na tentativa de emendas impossíveis. Depois de muito caminhar pela cidade, depois de mais uns cigarros e algumas sombras com cheiro de manga e caju, deu de cara com uma placa vermelha. Letras enormes que apontavam para o alto de um morro.
- Talvez um caminho pro céu, pensou.
- templo Hare Krishna. Repetiu em voz alta. Assim estava na placa colorida. Já havia ouvido falar nos alienados carecas, tão sinistros ou mais radicais que os idiotas amigos de Hitler, assim diziam as más línguas. A culinária natureba era famosa, servida antes do culto principal. Um verdadeiro anzol espiritual. Como não tinha um puto na carteira e a fome avançava a passos largos, não pensou duas vezes. Subiu a ladeira. Já havia ouvido um monte de histórias, mas nada que o convencesse de fato a encarar o evento. Mas da comida ele se lembrava. E isso bastava para motivá-lo a encarar a subida. Chegou à porta e viu uma imensa fila. Ficou surpreso. Vasculhou a multidão e percebeu gente de todas as classes. Não se intimidou, pelo contrário, sentiu-se muito a vontade. Chegou de mansinho, como se já fosse local. Puxou assunto com um, respondeu às dúvidas de outro, mesmo sem saber bulhufas da situação, enturmou-se em dois tempos e só na maciota já estava colocado na frente da fila. Percebeu de leve o ritual. As pessoas entravam e deixavam os seus calçados ao canto da porta. Ninguém tomava conta.
Incrível! Pensou, abismado com tal confiança. Encostavam seus calçados e pegavam um horroroso chinelo. Confortável sim, mas extremamente de mau gosto. O local era muito tranqüilo e perfumado. Sentiu uma verdadeira paz. Um ambiente com pessoas aparentemente felizes, algumas espalhadas pelo jardim, sorrindo e com o semblante de muitos amigos. Aproximou-se dele uma mulher com a cabeça raspada e uma bandeja de comida nas mãos.
- Hare! Falou a pequena.
- Hare tu também. Respondeu o sem noção. Os peitos da gostosa apontavam na direção da estrela mais alta do céu. Um verdadeiro manjar dos deuses. Ela oferecia uns bolinhos esquisitos. Ele alcançou um petisco sem mesmo olhar o que pegava. Era tudo completamente diferente do que ele estava habituado. Comeu bastante. Encheu a pança legal. Alimentou a larica zilhões de vezes. Ninguém o recriminou.
- encontrei o paraíso!
Assim pensava com um enorme sorriso estampado na lata. De repente, ecoou por todo o espaço um barulho confortável de um sino. Uma única batida, mas com uma propagação quase infinita. As pessoas começaram a entrar no salão, como que enfeitiçadas. Ele estava cabreiro, apenas observou atento a toda movimentação. Deixou a coisa tomar jeito. Foi um dos últimos a entrar. Não tinha outra escolha. Não gostava de lugares fechados, com muita gente, mas depois de chegar até ali, depois de imaginar cenas picantes com a deliciosa careca, sabia que não tinha mais volta. Precisava encarar a experiência mística que a subida lhe havia reservado. De repente, começou uma cantoria por todo o salão arejado. Ritmos orientais. A gang dos sem cabelos caminhava pelo espaço, entoando mantras monossilábicos. As pessoas, em seguida, começaram a imitação. Em pouco tempo, estava uma correria danada dentro do amplo salão. E ele parado. Incrivelmente congelado. Tentou perceber a dinâmica, sem muito êxito. Mexia apenas a cabeça, como que buscando um ritmo em um baile. Percebeu vários olhares indesejáveis, afinal de contas ele era o patinho feio da hora. Começou então a sua caminhada sem tirar os olhos das outras pessoas. Desconfiou geral. Os demais aceleraram o ritmo da caminhada. Começou uma louca correria dentro do salão. Ele se descontrolou. Com os olhos saltados, não perdeu tempo e saiu correndo, esbarrando murros para todos os lados. Tinha a plena certeza que queriam pegá-lo de qualquer jeito. Encontrou uma oportunidade e se mandou pela janela do recinto. Na portaria, pegou o primeiro calçado pela frente e desceu a ladeira desesperado. Sua caminhada espiritual havia chegado ao fim. Por hora, não sentiu nenhuma espiritualidade, mas manteve os pés secos durante todo o temporal que o surpreendeu na saída. Talvez o espiritual estivesse ali. Coitado de quem pegou o seu sapato furado. O inferno decididamente estava ali. Hare Krishna!




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O DOMADOR DE VENTOS QUE VENDIA PAÇOCA

O vento pesado no tórax não permitiu que ele desse outro passo. Ficou imóvel, com as bochechas coladas na orelha. Totalmente contra a sua vontade. De tempos em tempos acumulava forças fantásticas em resistência à natureza invencível e assim avançava mais um passo. Manteve o esforço calculado por todo o percurso. Ouviu estrondos horripilantes, levou rajadas molhadas na face enrugada por tentar enxergar, mas nada o fazia desistir. Rui Viana era um teimoso fanfarrão. Desempregado do Moinho Vera Cruz, fabricava paçoca no fundo do quintal de sua casa, habilidade alcançada em seus 10 anos de profissão. Em uma casa com poucos espaços, do lado de fora dependia do tempo para evoluir seus trabalhos. Tinha os braços mais fortes do Norte de tanto pilar. Um anão desacreditado. Acostumado a ouvir desaforos do povo, que mesmo comendo de seu prato, cuspiam farpas debochadas diante de sua estatura menos elevada.
- cuidado pra não esbarrar nas formigas, baixinho!
- vai tomar no seu cú, seu filho da puta! A
ssim ele resmungava e mesmo de baixo astral, sabia que não podia deixar que o vento espalhasse o seu ganha pão. De repente, a noite fechou em silêncio. Estava por conta própria, distante dos olhos mais conhecidos, bem perto do olho de um furacão bem faminto. Toda a cidade desistira da batalha. Uns escaparam pelo rio, deixando tudo para trás, outros partiram pela estrada, não deixaram convites e nem mapas. Era um deserto prestes a desaparecer em meio à fúria do vento rodopiado. Ainda estatelado, sem dó nem piedade, encarou o vento forte e centrífugo. Agarrou-se com todas as suas forças ao rabo da besta-fera. Jogou o corpo para um lado, em resistência, todo sem jeito, desesperado. Desviou dos trovões de um Zeus enfurecido, evitou a queda com forças arrancadas nem se sabe até hoje de onde. Estava decidido a ganhar, mas foi chupado sem a menor chance de luta. Em poucos instantes seus pés ficaram suspensos no ar. A terra vista do alto até que dava agonia. Misturou-se a um monte de coisas distintas. Tropeçou em pensamentos esquisitos. Por uns segundos, ansiou a derrota definitiva. Mas ao primeiro descuido do ar revoltoso, que soprava a vitória aos quatro cantos da terra, arregaçou uma boca imensa, maior que o mundo e engoliu o vento com toda a sua fúria em apenas uma única sugada.



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ISSO É TUDO

QUANTO MAIS EU FALO


MENOS ME RECONHEÇO


QUANTO MAIS INSISTO


É SEMPRE O MESMO TROPEÇO


QUANTO MAIS ENXERGO LONGE


EU MENOS ME VEJO


QUANTO MAIS EU MINTO


AUMENTA O MEU DESESPERO






QUANTO VALE O BEIJO?


QUANTO VALE O PERDÃO?


QUANTO MAIS AO NORTE


EU CHEGO EM SEU CORAÇÃO?


TANTO VALE O RISCO


QUANTO MAIS O TESÃO


QUANTO MAIS EU SINTO


PERCO MAIS A RAZÃO





TUDO QUE ME RESTA


É TENTAR ESQUECER


TUDO QUE ME RESTA


É TENTAR ESQUECER


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quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

PÉ DE VALSA ENGOMADINHO

Chegou ao baile todo engomadinho. O cabelo grudado na cabeça até que dava certo charme. Limpou os sapatos nas costas da calça, substituiu o palito encharcado na boca e invadiu o salão. Primeiro deu uma geral no ambiente lotado, como sempre fazia. Dirigiu o olhar certeiro para as gatas e disfarçou sorrisos entre as barangas. Manteve a posição segura, marcando as possíveis opções para um futuro amasso. Encostou-se no bar. Percebeu a movimentação e chamou o atendente.
- me dá uma água, cidadão!
Fez seu pedido alto e bom som, só para impressionar os olhares atentos, mas no vacilo geral, sacou uma garrafinha de vodka entocada no bolso do paletó e transbordou o copo de sua ingênua bebida. Entornou a metade e em seguida largou um tremendo elogio no ar.
- melhor do que água, só saliva de beijo molhado.
Um grupo de senhoras safadas, atentas aos movimentos do enxuto coroa se contorceram em risadas. Ele levantou o copo, mandou um beijinho e deu uma piscadela, cumprimento simpático aos olhos dos mais inocentes. Era a primeira tacada comemorada. Naquele exato momento se sentiu dentro da situação. Caminhou ao redor das mesas que enfeitavam a frente do bar do salão, sempre com aquele sorriso maldito na boca. Ele era o cara. Aproximou-se de um gordinho fumão e filou um careta. Não acendeu de imediato. Na verdade ele nem fumava. Detestava o cheiro de cigarros, mas fazia parte da trama que prenunciava o golpe fatal. Desfilou uma volta por todo o salão. Completou o copo com mais uma dose, na encolha, por detrás da pilastra que escorava o palco central. Embromou mais um pouco, escorou o cigarro nos lábios e parou de frente de sua primeira vítima.
- será que Princesa poderia me ajudar?
Mostrou sorridente o cigarro e aguardou a resposta, que veio completamente sem graça, da boca vermelho exagerado de uma senhora de uns 65 anos.
- eu não fumo.
- então quer dizer que a princesa tá planejando incendiar o salão com esse fogo todo?

O cigarro voou com a bofetada na cara. A coroa levantou-se falando um monte. Nem todos os velhos presentes estavam no ritmo das balinhas azuis, que abriam a porta do paraíso perdido. Ele olhou para os lados, na esperança de não ter sido notado, resgatou o cigarro e partiu para a próxima empreitada. A noite acabara de começar e ele estava determinado a não voltar para casa sozinho. Resolveu investir em uma gata mais jovem. Percebeu uma quarentona agitada, que equilibrava um copo de cerveja e um cigarro e sustentava a garrafa na outra mão. Ensaiou os passos, deslizou levemente e entrou na pista da toda prosa.
- só você pode me ajudar...
Com uma cara de menino levado, mostrou novamente o cigarro. Mas essa era de outro naipe. Logo esticou a mão que amparava o copo e o cigarro, e meio sem graça com a confusão, aos tropeços diante da situação, sorriu.
- isso ainda vai te matar vovô...
Ele nem se abalou. Rafael malandrinho era cobra criada, macaco velho dos bailes da periferia. Imediatamente segurou firme a mãozinha da dama, acendeu a bagaça, deu uma tragada de pressão, armou o biquinho e lançou bolas de fumaça que formavam corações pelo ar.
- morto eu já tô só de te ver, tesão...
Não preciso nem dizer que a loba ficou encantada com o entusiasmo do velho e a cena só poderia terminar no meio da pista de dança, com as bocas grudadas num delicioso bolero. Enquanto o sol cutucava a moleira dos boêmios sem par, eles continuaram dançando, devassos, sem hora certa para terminar.




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terça-feira, 6 de dezembro de 2011

TUDO NA CAÇAPA

Só lhe restou o vazio da mesa. E um silêncio assustador que pairava no ar. Ele nunca havia perdido um campeonato. Enfiou o taco nas costas e deu meia-volta, cabisbaixo. O foco preciso no chão. O bar. Sua única direção. Debruçou-se ao balcão. Exigiu um conhaque. Nem sentiu o gosto. Pediu outro, e outro ainda mais transbordado. Não costumava passar do segundo, mas o orgulho encarregou-se de não parar a contagem. Ficou bebaço. Chorou baixinho para dentro do copo, para nem ele e nem Deus ouvir. Trocou poucos olhares intimidados. Todos mudos. Era um apaixonado sem sua amante nos braços. Estava triste e completamente derrotado. Jurou que nunca mais iria jogar. Passou o resto dos seus dias com os pés enfiados na jaca. Mudou de endereço. Escolheu as calçadas. Mas um ano depois, no aniversário da cidade, o prefeito resolveu realizar um novo campeonato. O Sarjeta, então, decidiu ficar limpo. Comprou roupa nova. Fez a barba. Ficou irreconhecível aos olhos do povo. Em pouco tempo, já estava cercado de novo com aquela penca de bajuladores desgraçados. No dia da competição, chegou de fininho. Não queria causar alardes. Fez sua inscrição e aguardou a sua vez. Dirigiu-se à mesa, ginásio lotado. Ele estava agitado demais. Suava frio demais. As pernas estavam bambas demais. Mirou a bola com a convicção necessária e sapecou a redondinha com todo o resto de esperanças que ainda tinha. Acertou quatro. De cara. Gritou sua felicidade sem nenhuma censura. Mesmo com todo o seu gabarito, sabia que o que acabava de acontecer não passava de uma tremenda cagada. Mas ficou valente para a próxima tacada. Com todo o seu charme, arrochou o giz em seu taco. Mas a mão não parecia acompanhar suas emoções. Suava frio. Salivava incessantemente. Precisava de mais uma dose. Aos poucos, embebido de tanta paixão, a danada cobrava sua religiosidade. Preocupou-se com o descontrole e não resistiu.
- uma dose, faz favor!
O público silenciou. Ficaram paralisados diante de tal solicitação. Ele brindou em um único gole. O Sarjeta perdia completamente a noção. Mirou sem muita certeza nos olhos da única que poderia ser a sua salvação. Rasgou o forro da mesa, zunindo a bola para o lado de fora do estabelecimento. Mais uma vez derrotado. Agarrou a garrafa de conhaque e se mandou por debaixo das mesas. Sentou-se no beco, ao lado do ginásio e fixou residência. Havia investiu muito naquela partida. Mas viu a vida desmoronar na caçapa.



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MOLECAGEM

Abriu a porta da sala lentamente. Arma em punho. Bum! Foi alvejado no peito aberto. Descuido imperdoável na profissão. Teto preto geral. Presa fácil demais. Depois de um instante sem vida, estirado no chão, distante da porta, ainda ouvia seu coração reclamar. Então, abriu os olhos, ainda atordoado com o balaço que levara, sacudiu a cabeça, levantou a pistola com muita dificuldade e percebeu o perímetro com calma. Levou um bicão certeiro na mão. O trabuco foi longe. E sem chance de recuperação. Viu o seu algoz bem de perto, caminhando sorridente em sua direção. Arrastou-se em vão. O rastro de sangue demarcava o seu fim. Ficou de quatro, cambaleou atordoado. A essa altura, nem sabia direito o que lhe acontecia. E nem imagina o que estava prestes a lhe acontecer. Dor, facas, alicates imundos. Fios, sacos plásticos e enredos absurdos. Se já não bastasse a situação, ainda era vítima de sua mente derrotada, que fabricava torturas. Ele sabia que não agüentaria por muito mais tempo. Confessaria tudo aquilo que nem mesmo sabia. Qualquer aumentativo de dor era pinto perto do que sentia. Tava na cara que não seria resgatado com vida.
perdeu, seu filho da puta! Perdeu! Seu algoz, excitado, lhe metia a porrada e gritava sem parar. Era o fim. Caiu para o lado e quebrou-se todo no chão.
- Manhêeee! O Paulinho quebrou o enfeite da mesa, disse o irmão invejoso.
E a mãe, com seu discurso de mãe, disparou os olhos na direção do garoto.
- desgraçado! Foi presente da sua avó. Vem cá que eu vou arrancar sua orelha!
O garoto saiu correndo para o quintal, subiu na mangueira e ficou por lá até a hora do seu pai chegar. A mãe, enlouquecida, ainda berrou:
- Que brincadeira de mau gosto...uma molecagem!



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REBORDOSA

Acendeu o cigarro pelo lado do filtro. Ignorou o equívoco e o aviso estampado no maço. Arrancou a parte queimada e cuspiu fogo até o último trago. O ontem já era passado. E ele não tinha ideia de como havia chegado naquele buraco. Vasculhou apressado o bolso da calça. Revirou a carteira em busca de alguma pista que pudesse levá-lo de volta ao início. Nem mesmo a identidade ele encontrara. Mas tudo lhe parecia tão familiar e apesar de não ter a menor noção do que acontecia, tinha a plena certeza de que algo se repetia. O buraco. O maldito buraco. Iluminou com o isqueiro e seguiu direção adentro. Não enxergava mais que o máximo possível oferecido pela chama que segurava. O terreno era arenoso, úmido e fétido. E como não podia faltar em uma descrição pretensamente horripilante, morcegos sobrevoavam ao seu redor, baratas rastejavam pelas paredes, em fila, enlouquecidas com o calor que ele exalava de seu corpo. E ratos. Ratos pulavam de um lado ao outro, como se festejassem em um ritual a vinda de uma próxima refeição. O que mais poderia lhe acontecer diante daquele cenário de filme B? Quanto mais ele avançava, mais apertado o caminho ficava. A chama do isqueiro enfraquecia e ele já não sabia se deveria ter avançado. A cada passo que ele dava aumentava o cheiro da podridão. De repente, distante, ele ouve ruídos. Algo ainda inexplicável. Ele acelera os seus passos inseguros, e um clarão repentino interrompe o seu caminhar. Vozes, música, gritos e a imensa escuridão novamente tomam conta do seu horizonte. O que poderia ser? Como um louco Quixote ele avança e se depara com um tubo enorme, um caminho em direção ao céu. O isqueiro se apaga de vez. Ele olha para cima e percebe que lá do alto existe uma entrada. Ou uma saída definitiva daquele buraco perdido. Como um calango desengonçado, ele se agarra nas frestas do tubo e se arrasta sem jeito para o alto. Mete a cabeça com força na tampa que o separa de todo o mistério. Para a sua surpresa, ele sai de dentro de uma privada, em um banheiro imundo. Ele abre a porta e dá de cara com um boteco lotado, uma roda de samba anima a multidão na calçada. Ele respira, aliviado. Ajeita o penteado. E vai em direção ao balcão.
- mais uma dose? O garçom pergunta.
- é claro, é claro que eu to afim.


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O DESGASTE DO TEMPO NOS DENTES

Foi avisado pelo dente caído. Acordou engasgado com o molar enfraquecido na beira do abismo. Levantou num susto e cuspiu a pedra de moinho para o outro lado do quarto. O tempo acabara de marcar mais um ato. Enxugou a testa, preocupado. Caminhou aos tropeços, ainda com tosse, e abriu a janela. A madrugada continuava intacta. Mó era um sujeito pacato, que ao longo dos seus 55 anos já não insistia em superstições. Carregava as certezas nas costas pesadas e na pele amassada. Vivia só. Filho bastardo, distante de todos os outros, que aos recados, sempre se mantinham muito ocupados. Nunca havia casado, não tinha amizades e apenas cumprimentava de volta, sem amenidades. Contava os dias e os fracassos, como nas fábricas. E depois da queda do último dente, começaria a contar tudo de novo até a próxima desgraça. Lá fora, a chuva inaugurava a hora. Cuspiu um pouco de sangue e fechou a janela. Alcançou uma garrafa de vodka em cima do armário, com a intenção de assepsia, ou talvez ironia. Voltou para a cama e sentou-se de frente para o calendário. E bebeu ao passado. Varou os restos da madrugada com sua imagem desbotada na lembrança. Não assumiu nenhuma culpa. O desgaste do tempo estava evidente demais na ausência de seus fracos dentes. Com a garrafa pela metade e completamente insone, ouviu com os olhos chapados o ensurdecedor disparo do despertador. Dirigiu-se ao banheiro, sem pressa, como um ponteiro preciso e certo da próxima rodada, colocou a piroca para fora e esperou a mijada encostado. Encarou sua imagem no fundo da privada e chorou. Molhou o rosto e o cabelo. Vestiu a roupa pendurada atrás da porta. Apanhou a navalha preparada na pia, bebeu mais um gole e cortou-se. Os pulsos, os braços, o rosto. As orelhas, as pernas e o dorso. Um tremendo desastre. Ficou plantado de frente para o espelho, sorrindo. Percebeu. Seu corpo. Enfraquecer aos poucos. E em meio aos esguichos de sangue que jorravam por todos os lados, deixou nas paredes do banheiro o seu último recado.
- E agora?
Acabara de encerrar o espetáculo.


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