domingo, 25 de março de 2012

O INVERNO SEMPRE VOLTA



O corpo estava imerso por mais de uma hora na banheira. Apenas a cabeça fora da água o sustentava. Levantou-se com as dificuldades diárias, como se todos os dias amanhecesse faltando pedaços. O juízo pesava uns 10 kg, a boca ressecada colava e o bafo espantava a escova e a pasta. Mais uma vez mastigado. A razão não sentia pena e a culpa era de arrancar os braços. Até anoitecer ele sempre sofria. Arrastava-se pela casa como uma barata descontrolada fugindo da luz. Acabava estacionado na poltrona, de frente para a janela fechada, com uma garrafa de vodka aos tragos, colecionando baganas e fumando cigarros. Um espectador esfomeado para a próxima sessão. E quando tudo caminhava para o fim, ele deu um pulo felino, abriu a cortina - louco de paixão! - e recebeu a lua no meio da lata. Estava conectado. Emborcou o resto da garrafa e vagueou pela sala assobiando uma melodia qualquer, esbanjando atitude. Pegou outra vodka em cima do armário, escolheu com muita paciência a trilha das próximas horas – Inocentes – e partiu para a geladeira sem nenhuma culpa. Salaminho, azeitonas e um queijo fatiado fedido de outros dias. Foi quando o telefone tocou.


- fala!
- é o Roberto Teles?
- sim, meu amor, quem procura?
- eu sou a Takada, você me ligou na madruga...
- liguei?
- ligou sim, não é você que precisa de mulher? ou já se resolveu? Eu já cheguei na área, mas tô perdida....
- e quem não tá, meu amor...
- eu já tô na rua, mas não acho a casa...
- é a que tem dois números dois apagados...
- já chego aí.
- não duvido disso.

Ele foi até a janela. Deu uma espiada. Não havia uma alma para contar a história. A rua não parecia uma moça com boas intenções. Ajeitou o cabelo. Tomou uma dose caprichada, virou o pau para o lado esquerdo e respirou fundo. Foi quando ouviu as batidas na porta. Deu uma olhada pelo canto da cortina e viu uma oriental baixinha, com poucos peitos, e toda sorridente.

- e, aí, gostosa? Tava difícil?
- muito. não costumo vir pra essas bandas....
- sei...
- sério, eu nunca andei pela periferia.
- aqui também tem pecado, meu anjo.
- e é por isso que eu tô aqui!
- gostei disso.
- olha, a gente pode fazer diferente...
- acho difícil, meu amor, mas de qualquer forma, trás essa bucetinha oriental pra dentro e vamos ver o que a noite promete.

Ele deixou a japa girl entrar. O que ela não tinha de peito, tinha de bunda. E estava empinada em um salto alto, pronta para derrubar um planeta. A roupa parecia um disfarce, se a encontrasse pelas ruas jamais imaginaria se tratar de uma putinha de anúncio de orelhão. Mas esquisito mesmo era o nervosismo fora do normal para uma puta sabida. Ele virou mais um gole e lhe ofereceu a vodka.

- não. obrigado. eu não bebo.
- como?!
- eu não bebo.
- nada?
- nunca.
- sério?! não bebe em serviço ou nunca bebeu?
- nunca bebi.

O excesso de nervosismo da putinha, ele até que podia dar conta. Talvez ela estivesse assim porque nunca tinha andado naquela região, e o povo adora colocar o terror, como se a periferia fosse o elo perdido, mas daí a engolir que ela não bebia, isso era demais para a sua compreensão. Lembrou de uma vez que saiu com uma puta velha e passaram a noite bebendo álcool 96 com laranjada, ficaram tão chapados que a rampeira saiu do quarto do motel, subiu em cima do carro, derrubou a garrafa de álcool na cabeça e em seguida acendeu um cigarro. Ela desapareceu em uma sequência explosiva cinematográfica no estacionamento. Quando se tratava de putaria a parada era mais punk, não tinha esse negócio de não faço isso e não faço aquilo, mas de qualquer forma, a coisa não encaixava e ele resolveu ser mais cauteloso. A japinha, ainda vestida, parecia uma colegial curiosa.

- você mora sozinho aqui?
- sempre.
- tua casa é bem legal. Parece até casa de artista...
- é?
- os quadros na parede... pelo chão..nossa, em toda parte...
- quando eu não tô fudendo eu pinto.
- tem pintado bastante....
- deixa de onda, qual vai ser?
- vamos conversar mais um pouco, eu quero te conhecer melhor...
- olha, meu amor, posso até passar a noite inteira nessa contradição, mas só vou te pagar o tempo que eu estiver dentro de você.
- tá bom.
- tá bom é o caralho! Que pôrra de puta é você?

Ele segurou o queixo da japa e arriscou um beijo forçado. Ela resistiu, tentou fechar a boca, mas ele a apertou com mais força e lhe deu uma porrada bem dada no meio da cara. Ela cambaleou como um João bobo, mas ele a trouxe de volta lhe apertando o pescoço bem forte. Por uns instantes a menina ficou imóvel, como um passarinho na palma das mãos que o amassara. Dessa vez, a razão não chegou tarde demais. Ele, assustado com o quadro que pintara, jogou a oriental no chão e ainda ofegante, correu pela casa fechando as janelas, observando antes se havia alguma orelha do lado de fora. A japona rolou no meio da sala, o corpo para um lado e a bolsa desmantelada para o outro. Do jeito que a situação se formara, ela estava fudida. Depois de isolar toda a casa, ele arrastou a mesa e as cadeiras, abrindo espaço na sala, estava decidido a ir em frente, faminto e cego, sem doces intenções e...

- que porra é essa? Tropeçou nas coisas da japinha que ficaram espalhadas no chão. E ela, já recuperada dos apertões lhe confirmou.
- é minha bíblia.
- tá de sacanagem...
-não mesmo. Eu não saio de casa sem ela.
- que merda de puta é você que não bebe mas reza?
- e rezo sim. Agora mesmo, antes de bater em sua porta eu dei uma olhada em coríntios 6:13, 18 mas o corpo não é para a prostituição, mas para o senhor, e o senhor para o corpo... Fugi da prostituição. Qualquer outro pecado que o homem comete, é fora do corpo; mas o que se prostitui peca contra o seu próprio corpo.
- só me faltava essa... ei, minha criança, se ajoelha aqui pra fazer uma oração. Ele colocou a bíblia bem nos seus pés.
- moço, eu não sou quem você tá pensando...
- que se foda sua filha da puta, vai reclamar seus direitos no céu...
- sério, olha, a minha irmã é que se chama Takada. Eu sou Madalena. Eu atendi a sua ligação na madrugada. É que eu tô no momento do meu batismo lá na igreja e pra ser aceita eu preciso conquistar alguns fiéis perdidos. Pensei que se eu chegasse aqui no lugar de minha irmã...não sei... eu podia salvar logo dois de uma vez só...
- olha, meu anjo, o que eu tinha de fé, o padre arrancou quando eu era um moleque.
- mas Jesus está chegando!
- é o que sempre dizem... agora abre logo essas pernas que eu não quero tá ocupado quando ele chegar.
Ele partiu sorrindo para cima da religiosa. Rasgou a sua roupa. Deu uma porrada certeira que escorreu o melado na cara da coitada, e mais uma e mais outra e então outra. A japa caiu pelas beiradas, bateu na quina da mesa e desmaiou por uns instantes. Ele trepou como um cão desvairado. Meteu com tanta força, como se quisesse arrancar o próprio pau. A lembrança de um inverno maldito mais uma vez o violentara. De repente desistiu daquele corpo inerte. Caiu para o lado, exausto e encharcado. Suor e sangue entre o mijo e as fezes da japa. E o receio no cheiro. E a memória trancada.



Free counter and web stats

domingo, 18 de março de 2012

O DIA EM QUE MARCINHA EXPLODIU


Acabara de completar 10 anos de casada no último domingo. Não era um sonho realizado e muito menos fruto de uma escolha planejada. Certo dia reparou que a sua barriga aumentava horrores, algo que fugia completamente de seu controle, e assim progredia, mesmo quando não comia. E o drama maior foi quando percebeu o quanto que o tempo a envelheceu. Vivia em função da família, presa nas resoluções dos problemas dos outros, abafada diante da incapacidade de ser. A vida amorosa era morna. Clichê. Ainda sentia ligeiro tesão pelo marido, principalmente quando ele insistia com a língua cortante atrás de seu ouvido, mas nada perto de encharcar a calcinha, bem distante de sentir-se uma frágil adolescente no cio. Em outras épocas - bem antes da louca transformação - foi vocalista de uma banda feminina cover do Pink Floyd, a Pink Nic. Sustentava um cabelo azul, as unhas negras e exibia orgulhosa em seu antebraço a tatuagem da capa do disco The Dark Side of the Moon. Não deixava nada para o outro dia e foi assim, durante uma fúria enlouquecida do espírito, que ela arrastou o futuro marido pelo pescoço para dentro do camarim. Após o show, se entupiram de vodka e optalidon. Vomitaram água com a cara enfiada no vaso até o dia amanhecer. E nunca mais se separaram. Após alguns anos, era como se sobrevivesse encarcerada em um único dia, sem a lembrança do início e sem a menor chance de estar perto do fim. Seus momentos de tranquilidade se resumiam aos cigarrinhos – que ela não podia - e a vodka - que ela não devia - consumida de um jeito enlouquecido atrás da churrasqueira, lá no fundo do imenso quintal de sua casa. Tudo isso ao som de sua banda favorita, mais de 10 Gigas armazenados em sua memória. Quando se internava em seu cantinho esquecia de todo o resto que a sufocava, de tudo aquilo que a impedia de voar como nos velhos tempos, não queria nem saber se estava prestes a explodir, ela bebia e fumava desesperadamente, como se não houvesse depois – até hoje não sei se ela chutou o balde conscientemente ou se foi puro acidente de percurso -. Anteontem acordou desparafusada. E quando cuidava dos jardins e varria todo o quintal, percebeu uma enorme quantidade de folhas espalhadas por todo o terreno. Muitas mudas derrubadas ao chão, pareciam arrancadas, como um pensamento que nem chegou ao ponto de se imaginar em ação, como em sua vida, atropelada, transmudada e em decomposição. Imediatamente, com todo o carinho possível, enfiou a mão na terra molhada, inspirou profundamente e em seguida soltou o ar pela boca deixando escapar um pequeno sorriso esquecido. E ainda com as mãos bem enfiadas na terra, empinou a cabeça em direção ao céu e suspirou com uma vontade louca de que tudo se transformasse como em um passe de mágica. De repente, o cheiro inconfundível salivou a sua boca, imediatamente a nostalgia tomou conta do seu corpo, da sua memória, dos seus sentidos – ela se sentia viva! -. O cheiro vinha do fundo. Com os olhos fechados ela seguiu uma trajetória involuntária. Enfeitiçada pelas sensações do passado, tropeçou em canteiros de leguminosas, chutou alguns vasilhames com rosas - seu olfato apontava para o outro quintal - virou ao contrário um magnífico vaso vazio e com as mãos agarradas no topo do muro deu um salto incrível, como uma gata charmosa e sedenta, capaz de destroçar qualquer gato em apenas um mio. Na outra casa a vizinha andava de um lado para o outro, na maior pilha, gesticulava tanto, que podia causar inveja ao mais rápido beija-flor do jardim. Marcinha só percebeu que a mulher falava ao telefone quando a ligação terminou e ela sossegou os braços, estacionando em seguida um tremendo cachimbo entre os lábios. Aquela visão invadiu sua alma como um raio desgovernado, quebrando todas as possibilidades de negação, a fissura estava estampada em sua cara. Marcinha sentiu as pernas bambearem, a boca ficou ainda mais aguada, ela paralisou completamente.


- fala vizinhaaaaa! Disse a maluca exibindo o crime na boca. Marcinha não sabia se respondia ou se continuava a observar a magnífica trajetória da fumaça ou se pulava no pescoço da mulher e lhe arrancava, sem medir esforços, o cachimbão que ela fumava.

- vai um tapa?


- po-posso?


- lógico... E antes mesmo que ela terminasse, Marcinha já estava lambendo a sua face, com cara de criança pidona. A dona da casa não tinha mais do que 28 anos, sete a menos que ela. Um corpo enorme e magro, e suficientemente musculoso, e cabelos curtos, e olhos grandes, a androginia e humana figura era professora de educação física, a contradição em pessoa.

- calma... Silvinha ficou horrorizada com a fome da vizinha – ela fumava de um jeito muito esquisito, tava quase mastigando a porra do cachimbo -. Quase se rasgaram em gargalhadas, como se desejassem esgotar todo o arsenal de risos de uma só vez. E foi exatamente nesse momento relaxado, dessa intimidade toda, que a Marcinha percebeu que havia fumado demais. Sua voz falhava. As articulações rangiam e prenunciavam o desastre.

- que merda! Vai começar tudo de novo! Desesperadamente ela começou a caminhar pelo quintal, as mãos na cabeça, a respiração ofegante...

- É revertério? Os olhos arregalados gritaram.

- não é isso, eu não devia... o que foi que eu fiz...fique bem longe de mim...eu preciso voltar antes que... Ela saiu correndo desajeitada, deu um salto esticado e desapareceu por cima do muro na escuridão do outro lado. Silvinha não entendeu nada. Ficou paralisada, completamente sem noção do que acabara de testemunhar. Aguardou alguns instantes, mas foi em vão. Provocada por uma alucinada curiosidade decidiu ir atrás de sua vizinha. Caminhou em direção ao muro. O coração inquieto avisava para não avançar. Ela subiu em um caixote, rompeu a fronteira e mesmo sem enxergar nada, pulou de cabeça no outro terreno. Caiu ao lado daquilo que era o corpo de Marcinha. Um pescoço que girava em 360, e a cada volta voltava inválido, derrotado e com os parafusos sobrando. Batia as pernas sem direção, mexia os braços descompassados em resistência e resignação. Soltava faísca pelo nariz e fumaça do topo da cabeça, débil tentativa de retomar os sentidos. Mas estava quebrada e com vários pedaços de fios expostos sem nenhuma possibilidade de união. Vazava óleo pelos olhos – mas isso eu já desconfiava -. E foi assim. O dia em que Marcinha explodiu.



Free counter and web stats

sexta-feira, 9 de março de 2012

POEMA DE BOCA


Esse vídeo foi realizado no segundo semestre de 2010, para a disciplina Criatividade: Expressões Artísticas, do curso de Artes Visuais, optativa no meu curso de Letras da UFRR. A proposta da professora Larissa era discutir sobre o processo criativo, e os alunos deveriam produzir algum material sobre esse processo. Eu criei alguns poemas visuais, que já foram postados as fotos aqui, e esse vídeo, que na verdade são todos os poemas visuais. E é só. As possíveis explicações foram dadas em sala de aula. Agora, a boca é livre!


POEMA DE BOCA
http://www.youtube.com/watch?v=7HJCg_dVDlQ




Free counter and web stats