domingo, 18 de março de 2012

O DIA EM QUE MARCINHA EXPLODIU


Acabara de completar 10 anos de casada no último domingo. Não era um sonho realizado e muito menos fruto de uma escolha planejada. Certo dia reparou que a sua barriga aumentava horrores, algo que fugia completamente de seu controle, e assim progredia, mesmo quando não comia. E o drama maior foi quando percebeu o quanto que o tempo a envelheceu. Vivia em função da família, presa nas resoluções dos problemas dos outros, abafada diante da incapacidade de ser. A vida amorosa era morna. Clichê. Ainda sentia ligeiro tesão pelo marido, principalmente quando ele insistia com a língua cortante atrás de seu ouvido, mas nada perto de encharcar a calcinha, bem distante de sentir-se uma frágil adolescente no cio. Em outras épocas - bem antes da louca transformação - foi vocalista de uma banda feminina cover do Pink Floyd, a Pink Nic. Sustentava um cabelo azul, as unhas negras e exibia orgulhosa em seu antebraço a tatuagem da capa do disco The Dark Side of the Moon. Não deixava nada para o outro dia e foi assim, durante uma fúria enlouquecida do espírito, que ela arrastou o futuro marido pelo pescoço para dentro do camarim. Após o show, se entupiram de vodka e optalidon. Vomitaram água com a cara enfiada no vaso até o dia amanhecer. E nunca mais se separaram. Após alguns anos, era como se sobrevivesse encarcerada em um único dia, sem a lembrança do início e sem a menor chance de estar perto do fim. Seus momentos de tranquilidade se resumiam aos cigarrinhos – que ela não podia - e a vodka - que ela não devia - consumida de um jeito enlouquecido atrás da churrasqueira, lá no fundo do imenso quintal de sua casa. Tudo isso ao som de sua banda favorita, mais de 10 Gigas armazenados em sua memória. Quando se internava em seu cantinho esquecia de todo o resto que a sufocava, de tudo aquilo que a impedia de voar como nos velhos tempos, não queria nem saber se estava prestes a explodir, ela bebia e fumava desesperadamente, como se não houvesse depois – até hoje não sei se ela chutou o balde conscientemente ou se foi puro acidente de percurso -. Anteontem acordou desparafusada. E quando cuidava dos jardins e varria todo o quintal, percebeu uma enorme quantidade de folhas espalhadas por todo o terreno. Muitas mudas derrubadas ao chão, pareciam arrancadas, como um pensamento que nem chegou ao ponto de se imaginar em ação, como em sua vida, atropelada, transmudada e em decomposição. Imediatamente, com todo o carinho possível, enfiou a mão na terra molhada, inspirou profundamente e em seguida soltou o ar pela boca deixando escapar um pequeno sorriso esquecido. E ainda com as mãos bem enfiadas na terra, empinou a cabeça em direção ao céu e suspirou com uma vontade louca de que tudo se transformasse como em um passe de mágica. De repente, o cheiro inconfundível salivou a sua boca, imediatamente a nostalgia tomou conta do seu corpo, da sua memória, dos seus sentidos – ela se sentia viva! -. O cheiro vinha do fundo. Com os olhos fechados ela seguiu uma trajetória involuntária. Enfeitiçada pelas sensações do passado, tropeçou em canteiros de leguminosas, chutou alguns vasilhames com rosas - seu olfato apontava para o outro quintal - virou ao contrário um magnífico vaso vazio e com as mãos agarradas no topo do muro deu um salto incrível, como uma gata charmosa e sedenta, capaz de destroçar qualquer gato em apenas um mio. Na outra casa a vizinha andava de um lado para o outro, na maior pilha, gesticulava tanto, que podia causar inveja ao mais rápido beija-flor do jardim. Marcinha só percebeu que a mulher falava ao telefone quando a ligação terminou e ela sossegou os braços, estacionando em seguida um tremendo cachimbo entre os lábios. Aquela visão invadiu sua alma como um raio desgovernado, quebrando todas as possibilidades de negação, a fissura estava estampada em sua cara. Marcinha sentiu as pernas bambearem, a boca ficou ainda mais aguada, ela paralisou completamente.


- fala vizinhaaaaa! Disse a maluca exibindo o crime na boca. Marcinha não sabia se respondia ou se continuava a observar a magnífica trajetória da fumaça ou se pulava no pescoço da mulher e lhe arrancava, sem medir esforços, o cachimbão que ela fumava.

- vai um tapa?


- po-posso?


- lógico... E antes mesmo que ela terminasse, Marcinha já estava lambendo a sua face, com cara de criança pidona. A dona da casa não tinha mais do que 28 anos, sete a menos que ela. Um corpo enorme e magro, e suficientemente musculoso, e cabelos curtos, e olhos grandes, a androginia e humana figura era professora de educação física, a contradição em pessoa.

- calma... Silvinha ficou horrorizada com a fome da vizinha – ela fumava de um jeito muito esquisito, tava quase mastigando a porra do cachimbo -. Quase se rasgaram em gargalhadas, como se desejassem esgotar todo o arsenal de risos de uma só vez. E foi exatamente nesse momento relaxado, dessa intimidade toda, que a Marcinha percebeu que havia fumado demais. Sua voz falhava. As articulações rangiam e prenunciavam o desastre.

- que merda! Vai começar tudo de novo! Desesperadamente ela começou a caminhar pelo quintal, as mãos na cabeça, a respiração ofegante...

- É revertério? Os olhos arregalados gritaram.

- não é isso, eu não devia... o que foi que eu fiz...fique bem longe de mim...eu preciso voltar antes que... Ela saiu correndo desajeitada, deu um salto esticado e desapareceu por cima do muro na escuridão do outro lado. Silvinha não entendeu nada. Ficou paralisada, completamente sem noção do que acabara de testemunhar. Aguardou alguns instantes, mas foi em vão. Provocada por uma alucinada curiosidade decidiu ir atrás de sua vizinha. Caminhou em direção ao muro. O coração inquieto avisava para não avançar. Ela subiu em um caixote, rompeu a fronteira e mesmo sem enxergar nada, pulou de cabeça no outro terreno. Caiu ao lado daquilo que era o corpo de Marcinha. Um pescoço que girava em 360, e a cada volta voltava inválido, derrotado e com os parafusos sobrando. Batia as pernas sem direção, mexia os braços descompassados em resistência e resignação. Soltava faísca pelo nariz e fumaça do topo da cabeça, débil tentativa de retomar os sentidos. Mas estava quebrada e com vários pedaços de fios expostos sem nenhuma possibilidade de união. Vazava óleo pelos olhos – mas isso eu já desconfiava -. E foi assim. O dia em que Marcinha explodiu.



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