sexta-feira, 2 de outubro de 2009

REBORDOSA


Acendeu o cigarro pelo lado do filtro. Ignorou o ambíguo e o aviso estampado no maço. Arrancou a parte queimada e cuspiu fumo até o último trago excitado. Adiantou por mais cinco minutos o fim, enquanto o sol invadia a sala pelos buracos roídos espalhados pela cortina velha descosturada. O ontem já era passado. E fato. Levantou-se aos tropeços e foi em direção à geladeira. Carecia, no mais pretérito imperfeito possível, substituir o gosto dos três dias seguidos. Era o indicativo do tudo entornado. Sacou um litro de leite estragado e entornou o líquido grosso no liquidificador, seu carrasco, sem preocupar-se com cores e odores. Cagou pros sabores. Revirou as garrafas vazias espalhadas pela casa, sacudiu esperanças dos copos ainda molhados, e por fim, hesitantemente desesperado, misturou tudo com um vidro inteiro de alfazema. Bateu ligeiro. Cambaleou no processo. E bateu com os dentes trincados com toda a certeza do ato. Pensou um hiato. Bebeu de uma só vez, sem jeito e sem alma. Escorou-se na pia. Sem calma. Queimou as células, aumentou o buraco. Sem volta e sem contos. Somente remédio pro tédio. Os restos do estômago impedido cobraram aos gritos suas fracas convicções e ainda assim chegou ao criado-mudo. Insistentemente vitorioso esticou o braço, trêmulo há dias. Insistiu no cigarro. Acendeu-o pelo lado do filtro. Ignorou o ambíguo e o aviso estampado no maço. Arrancou a parte queimada e cuspiu fumo até o seu último trago. Morreu de câncer generalizado.





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