terça-feira, 3 de janeiro de 2012

HOMENAGEM AO SURFISTA CALHORDA

Estacionou seu pequeno fusquinha amassado num mísero espaço entre duas caminhonetes. Foi preciso no cálculo. Nem de longe chegou perto das inúteis orientações paranóicas de seu antigo instrutor. Saiu pelo teto solar, com os braços abertos, espreguiçando na cara do sol, na maior cara-de-pau. Olhou para o mar, esperançoso, e avistou altas ondas. Poucos surfistas se aventuravam no quintal de Poseidon. Apenas alguns Big Riders tarados e sem um pingo de responsabilidade na lata. A areia bombava de gente por todos os lados. O cheiro do medo antecipava qualquer comentário - era a maldita ressaca de Janeiro! De tempos em tempos, pranchas aos pedaços voavam e minúsculos corpos desmaiados e destroçados eram arremessados de volta à areia. O mar não fazia acordos e muito menos estabelecia diálogos. Marcão Marconha, cheio de si, sacou sua prancha de madeira, rachada, fez um sinal da cruz, deu um último tapa e invadiu as areias da praia. E a cada passo que dava, em meio a fumaça que revelava o herói, o povo comentava.


- olha lá, é o Madeira!


- é mesmo, irmão, acho que o minhoca do Madeira vai cair!


- ele disse que era a sua despedida! Vai enterrar a madeira rachada!

E assim as bocas falavam. Bocas de curiosos, bocas de espírito de porco e até mesmo bocas avermelhadas e carnudas, loucas para dar um pega legal no carinha da hora. Marcão chegou bem na beira da água, repousou a prancha - que pra muitos já era da idade da pedra - e sentou-se confortavelmente. Alongou-se, como qualquer atleta safo. O mar estava gigante - qualquer imagem perto do fim do mundo era pinto – e ele olhou para trás, cabreiro e viu a moçada, geral, com os olhos arregalados e os lábios mordidos. Não tinha mais volta. Ou ele domava os vagalhões impossíveis, ou então, passaria o resto de seus dias com os dedos dos outros enfurnados em sua cara. Molhou os pés – cautelosamente – e sentiu uma leve tapa da brisa que vinha do mar. Arrepiou até o último fio do cabelo. Nenhum surfista havia conseguido entrar, pegar uma onda inteira e voltar para praia – como disse antes, eles eram arremessados como cuspe desengonçado que vara sem destino pelo ar – ninguém conseguia finalizar uma onda. O mar decididamente não estava para peixes – o que dirá pra surfistas calhordas – mas o Marcão era o cara. Ele tinha o gérmen da insanidade correndo enlouquecidamente pelas suas veias. Para ele não tinha tempo ruim. O povo na areia não parava de comentar.

- ele não vai conseguir...


- tá fudido! Chama logo a emergência!

Ele percebeu o burburinho. Estava mais do que decidido. Enfiou o estrepe no pé direito, caminhou em direção à água e caiu de cara no mar nervoso. Por alguns instantes, desapareceu. Ninguém entendeu nada. Era só espuma e pancadas violentas na arrebentação. O silêncio imperou – eu vi gente chorando, pode acreditar, eu tava lá – e sem que ninguém percebesse, depois da última série avassaladora, o Marconha despencou de 90 pés enfurecidos – são 30 metros maluco! – e veio cheio de marra, berrando a música do Michel Teló, com os braços abertos como no Titanic, cortando todas as possibilidades de erros, entubando radicalmente, chegando bem na beirinha e saltando da prancha como se fosse brincadeira de criança. Na areia o povo urrava de felicidade, mas sua saída do mar foi em silêncio, estufada de moral. Ele cavou um buraco, enterrou sua prancha, fez uma rápida oração – despedida - e caminhou para o estacionamento. Entrou no fusquinha pelo teto solar e depois de muito amassar as caminhonetes, saiu cantando o pneu. Bateu de frente no cruzamento da Mavericks com a Jaws, em um imenso caminhão de cerveja. Perda total do veículo. Marcão Marconha morreu.

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