terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

A REVOLTA DO 3º ANDAR


Quando junho aproximava-se, o cabeça entrava em festa. Pelo menos o último andar. A molecada do 4º corria pela vizinhança para arrecadar alguns trocados. Nessa época, os andares pareciam que não faziam parte do mesmo prédio. Quem morava no último nem pensava em pedir dinheiro para quem morava nos outros andares. Os do 3º não tinham recursos suficientes para fazerem uma festa somente eles. E nem tinham a manha de pedir pela vizinhança. Não eram bem-vindos pelos de cima e isso é o que os incomodava demais. A turma do 2º não ligava para tal data. Eram na sua maioria adultos e não estavam nem aí para a comemoração dos santos. Todos os anos era a mesma exclusão. Até o dia do grande evento, o povo de cima havia arrecadado uma boa quantia para a culminância junina. Os intermediários não tinham a menor ideia do que poderiam fazer. Não saía da cabeça deles o interesse em participar do São João animado do 4º andar. Era a coqueluche do momento, como diziam à época. Tudo arranjado. A quadrilha ensaiada. As comidas garantidas e com muita fartura. O andar completamente enfeitado, repleto de bandeirinhas de diversas cores, pequenos balões coloridos traziam prêmios escondidos em suas buchas, ninguém poderia duvidar de que ali haveria uma festa sem fim. Na escada que dava para o último andar havia uma mesa bloqueando a passagem. E Simone, uma figura gorda, imensa, com a cara lotada de espinhas, e que morava no prédio desde que nascera, estava ali para barrar a entrada dos indesejáveis. O não, sem dúvida alguma, não perturbava mais do que sua aparência escrota e com cara de poucas amizades. A turma do 3º foi para o fundo do seu corredor e ali iniciaram uma pequena assembléia. Estavam revoltados com a postura dos de cima. Todo o ano era a mesma coisa. Quem morava embaixo não podia nem chegar perto da escada. Chupeta morava no 3º. Era um garoto como outro qualquer, se não fossem os seus imensos dentes projetados para fora da boca, dava inveja aos piores roedores dos esgotos locais. E mesmo fazendo parte da minoria rejeitada não era um cara de muitos amigos por ali. Mas estava no meio da reunião. Chegou meia hora depois e já com o discurso pronto. Dizia que aquele ano deveria ser o último que os do 3º sofreriam tal sanção. Mesmo chegando depois e já encontrando a turma toda derrotada e com ares de que mais um ano passaria em branco, conseguiu inflamar alguns com seu plano de ocupação do 4º andar. Não achava possível que todos os anos eles passassem por tamanha humilhação. D. Carmem, mãe de uma das meninas presentes na assembléia, chegou pelas beiradas e ouviu a tudo bem atenta. Tentou de todos os jeitos desarticular o plano do Chupeta, mas ele foi mais arisco, - a maioria de nós somos proprietários de nossos apartamentos nesse prédio, não é mesmo? A maioria concordou. – então, como é que esse povo lá de cima pode impedir que a gente, proprietária de nossos imóveis e moradores há anos daqui não podemos circular pelo prédio todo? Foi um tumulto geral. Uns questionaram a opinião do menino, outros concordaram e até urraram gritos de guerra. Mas não teve jeito, A Revolta do 3º andar já estava anunciada. Branquinho, moleque franzino, nojento demais por nunca limpar a cachoeira de catarro que sempre descia do seu nariz, e que vivia cagando nas calças e espalhando os restos da merda pelas paredes do prédio, foi até a sua casa e pegou um martelo de bater carne. Voltou gritando como um verdadeiro Thor. Anunciou a revolta para quem quisesse ouvir. Para ele, todos deveriam se armar e invadir o andar de cima sem o menor perdão. Em sua mente insana de seus 12 anos de idade, todos deveriam confiscar as comidas, pegar as meninas pelos braços e dançarem a quadrilha do jeito deles. Não parava de repetir com os lábios lotados de um cuspe branquinho, - vamos confiscar geral! D. Carmem tentou acalmar os ânimos alterados, mas foi em vão. A correria começou. Cada membro da assembléia, meninos e meninas, foram às suas casas e voltaram com tábuas de bater carne, alicates de unha, alguns traziam um lápis de ponta bem fina nas mãos e até furadeiras apareceram por lá. Nada mais poderia evitar a invasão. Na hora da quadrilha, o momento principal da festa, às oito da noite, momento em que todos estavam distraídos e sentados a observarem a dança escrota, os moradores do 3º tomaram de assalto o andar de cima. A primeira vítima foi Simone, a espinhenta levou uma pancada na cabeça com um ralador de verduras e caiu para o lado ensangüentada e não parou mais de gritar, - estão invadindo! estão invadindo! Em seguida, o primeiro par da dança foi arrastado a pauladas de rolo de amassar macarrão para o canto do corredor. E o caos foi instaurado. Os adultos do 2º, a maioria mulheres, ouviram o massacre e subiram para o andar do terror. Já chegaram percebendo a situação e não perdoaram ninguém. Engrossaram o caldo quente e vermelho do massacre com tapas, mordidas e muitos puxões de cabelo nos adultos do 4ºandar. Depois de meia hora de guerra, a festa continuou. Os moradores do andar egoísta e excludente serviram aos outros moradores de baixo todos os seus aperitivos e pratos principais. Realizaram um desfile dos ex-combatentes, detonados e completamente humilhados diante de seus rivais oprimidos. No outro ano, o cabeça fez a maior festa do bairro. E nem mesmo o mais sujo mendigo ficou de fora. As portas estavam abertas para sempre. E o grito de guerra da molecada do 3º ecoa nos ouvidos dos moradores do cabeça até hoje, - Anarriê!




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