sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

CAMINHADA ESPIRITUAL

Pulou do coletivo aos gritos. Não tinha dinheiro para a passagem, mas também não precisavam tratá-lo com tamanha grosseria. Caminhou sob um sol de rachar pelo centro da cidade, o sapato furado bem na ponta do dedão incomodava muito os seus passos. Distraiu-se em meio aos camelôs e já havia até esquecido o ocorrido. Não era de guardar ressentimentos por mais de cinco minutos. Foi o tempo de um cigarro sentado à sombra de um cajueiro, observando a rotina da rua. No fundo, queria apenas se deslocar sem rumo. E o pensamento, às vezes, o levava a caminhos mais físicos. Se pudesse não pensar, seria ótimo, mas não conseguia atingir tal proeza. Nunca desejou ser um monge zen e muito menos coroinha de Igrejas que arrancavam todas as suas vontades com falsas promessas de um mundo melhor. Desconfiava de tais excessos absurdos e não era ligado em nenhuma religião. Duvidava de crenças com discursos estapafúrdios, fundamentados em proibições desnecessárias, o alimento das almas sem direção. Mesmo assim, ele sabia que precisava seguir um caminho espiritual. Ou pelo menos acreditar em algo que servisse de freio aos seus desejos mais obscuros. Essa era uma regra social herdada que não lhe deixava muitas opções. Mas nunca foi convicto em nada. Para se ter uma ideia, no futebol, torcia pelo time que o mais fanático da esquina estivesse bancando a gelada. Mesmo assim, visitou diversas igrejas capitalistas, passou por seitas malucas, conversou com pastores pilantras, os pseudo-arrependidos de um passado cabuloso, de orgias, drogas e muitos pecados capitais. E mesmo sem perceber, continuava a sua peregrinação em busca da paz almejada. Um valor inerente ao ser humano. Ou uma armadilha do desejoso tumulto contínuo que ansiava sua alma. Sabia que só avançava alguns passos após um tremendo rebuliço em sua vida. E assim seguia. Sem muitos planos. Apenas os dias e as noites na tentativa de emendas impossíveis. Depois de muito caminhar pela cidade, depois de mais uns cigarros e algumas sombras com cheiro de manga e caju, deu de cara com uma placa vermelha. Letras enormes que apontavam para o alto de um morro.
- Talvez um caminho pro céu, pensou.
- templo Hare Krishna. Repetiu em voz alta. Assim estava na placa colorida. Já havia ouvido falar nos alienados carecas, tão sinistros ou mais radicais que os idiotas amigos de Hitler, assim diziam as más línguas. A culinária natureba era famosa, servida antes do culto principal. Um verdadeiro anzol espiritual. Como não tinha um puto na carteira e a fome avançava a passos largos, não pensou duas vezes. Subiu a ladeira. Já havia ouvido um monte de histórias, mas nada que o convencesse de fato a encarar o evento. Mas da comida ele se lembrava. E isso bastava para motivá-lo a encarar a subida. Chegou à porta e viu uma imensa fila. Ficou surpreso. Vasculhou a multidão e percebeu gente de todas as classes. Não se intimidou, pelo contrário, sentiu-se muito a vontade. Chegou de mansinho, como se já fosse local. Puxou assunto com um, respondeu às dúvidas de outro, mesmo sem saber bulhufas da situação, enturmou-se em dois tempos e só na maciota já estava colocado na frente da fila. Percebeu de leve o ritual. As pessoas entravam e deixavam os seus calçados ao canto da porta. Ninguém tomava conta.
Incrível! Pensou, abismado com tal confiança. Encostavam seus calçados e pegavam um horroroso chinelo. Confortável sim, mas extremamente de mau gosto. O local era muito tranqüilo e perfumado. Sentiu uma verdadeira paz. Um ambiente com pessoas aparentemente felizes, algumas espalhadas pelo jardim, sorrindo e com o semblante de muitos amigos. Aproximou-se dele uma mulher com a cabeça raspada e uma bandeja de comida nas mãos.
- Hare! Falou a pequena.
- Hare tu também. Respondeu o sem noção. Os peitos da gostosa apontavam na direção da estrela mais alta do céu. Um verdadeiro manjar dos deuses. Ela oferecia uns bolinhos esquisitos. Ele alcançou um petisco sem mesmo olhar o que pegava. Era tudo completamente diferente do que ele estava habituado. Comeu bastante. Encheu a pança legal. Alimentou a larica zilhões de vezes. Ninguém o recriminou.
- encontrei o paraíso!
Assim pensava com um enorme sorriso estampado na lata. De repente, ecoou por todo o espaço um barulho confortável de um sino. Uma única batida, mas com uma propagação quase infinita. As pessoas começaram a entrar no salão, como que enfeitiçadas. Ele estava cabreiro, apenas observou atento a toda movimentação. Deixou a coisa tomar jeito. Foi um dos últimos a entrar. Não tinha outra escolha. Não gostava de lugares fechados, com muita gente, mas depois de chegar até ali, depois de imaginar cenas picantes com a deliciosa careca, sabia que não tinha mais volta. Precisava encarar a experiência mística que a subida lhe havia reservado. De repente, começou uma cantoria por todo o salão arejado. Ritmos orientais. A gang dos sem cabelos caminhava pelo espaço, entoando mantras monossilábicos. As pessoas, em seguida, começaram a imitação. Em pouco tempo, estava uma correria danada dentro do amplo salão. E ele parado. Incrivelmente congelado. Tentou perceber a dinâmica, sem muito êxito. Mexia apenas a cabeça, como que buscando um ritmo em um baile. Percebeu vários olhares indesejáveis, afinal de contas ele era o patinho feio da hora. Começou então a sua caminhada sem tirar os olhos das outras pessoas. Desconfiou geral. Os demais aceleraram o ritmo da caminhada. Começou uma louca correria dentro do salão. Ele se descontrolou. Com os olhos saltados, não perdeu tempo e saiu correndo, esbarrando murros para todos os lados. Tinha a plena certeza que queriam pegá-lo de qualquer jeito. Encontrou uma oportunidade e se mandou pela janela do recinto. Na portaria, pegou o primeiro calçado pela frente e desceu a ladeira desesperado. Sua caminhada espiritual havia chegado ao fim. Por hora, não sentiu nenhuma espiritualidade, mas manteve os pés secos durante todo o temporal que o surpreendeu na saída. Talvez o espiritual estivesse ali. Coitado de quem pegou o seu sapato furado. O inferno decididamente estava ali. Hare Krishna!




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