quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

HELENA

Completou com uma dose de whisky o último gole do café requentado e bebeu a mistura. Os olhos saltaram como espinha espremida na face. Caminhou agitado, sem saber ao certo o que fazer, ou por onde deveria começar. Recolheu as roupas abandonadas no sofá, empilhou os livros no canto da sala e limpou todos os cinzeiros espalhados estrategicamente em sua humilde residência – na verdade, um quarto de hotel, ele tentava uns bicos como porteiro nos fins de semana e em troca disto, morava no último andar, em um reservado, que não era bem um quarto, mas um espaço de depósito que fora reformado para receber o porteiro - varreu e passou pano no chão. Limpou o aquário e colocou comida para os peixes. Caçou uma barata ninja por entre as bordas do armário da cozinha e por fim, acendeu um cigarro na boca do fogão e esperou a água ferver para o próximo café. Já passava das seis e a noite mostrava a sua cara tumultuada. Ernesto era um sujeito sossegado, quase um eremita urbano, se não fosse o fato de morar com a estonteante Helena. Ele era um excelente violoncelista, mas somente na presença de Helena.  Ela era a sua fonte de inspiração e sempre o acompanhava nas noites infernais do The Club, um bar isolado na periferia da cidade, estilo americanizado, especializado em jazz. Não era qualquer um que podia frequentar aquele antro - nada disso - , as reservas eram feitas com antecedência e somente para uma lista muito seleta, havia um cassino clandestino - mas eu falava do Ernesto - o músico, que como qualquer outro músico tinha a displicência e a disciplina caminhando lado a lado - é verdade, nunca vi sujeito mais disciplinadamente distraído -, não importava para qual direção ele fosse, contanto que pudesse levar Helena em seus braços. Acordava todas as tardes com uma ressaca dos diabos e antes mesmo de levantar da cama, acendia um cigarro, fumava calmamente, encarando Helena e em seguida partia para dentro da sua fonte de inspiração. E assim ele fazia músicas belíssimas. Depois de morto de cansado, ainda enfrentava as tarefas domésticas, fazia o café – bebia misturado com whisky, lembre-se dessa passagem, pois é totalmente relevante nessa história – e se aprontava para mais uma noite no clube. E assim prosseguia o Ernesto, sem muitas alterações em sua rotina. Depois de mais uma noite ensandecida em seu trabalho, depois de mais outro porre desgraçado - desses que te deixam com a impressão no outro dia de que algum órgão seu foi retirado -, ele não acordou. E essa não foi a primeira vez que ele perdeu os sentidos completamente. Uma vez, acordou no telhado do hotel. Outra vez, acordou no vão que separa o oitavo do sétimo andar – mas eu falava do Ernesto - na tarde que antecedeu a tragédia, ele não acordou. Helena ficou paralisada - não podia fazer nada sem ele. Com certeza chegaria atrasado. E isso pode até parecer algo tão simples e contornável, mas a rotina do Ernesto incluía os atrasos diários, ele chegava bêbado no trabalho – eu sei que omiti essa informação, mas só tô tentando não piorar ainda mais a situação desse indivíduo -. Ele queria andar na linha, mas chutava o balde todas as noites e como consequência, o inevitável atraso – sem falar que ele atravessava direto nas canções - e o seu chefe, um colombiano estúpido e cheio de si, já havia batido o martelo – se amanhã for chegar atrasado, nem coloque a cara no meu estabelecimento, assim ele disse, invocado, puto dentro das calças, falou bem alto para todo mundo ouvir, coisa que nunca fazia, sempre chamava o funcionário no canto e passava o sabão na criatura. Diante de tantas testemunhas, o Ernesto sentiu a corda bem apertada em seu pescoço. Depois de sua apresentação decidiu não beber mais uma gota de álcool. Estava decidido a voltar para casa mais cedo, descansar como os outros mortais e levantar no outro dia mais inteiro. Precisava tomar uma atitude mais que urgente. A sua existência e a de Helena dependiam de uma mudança radical em sua vida. Mas, como disse anteriormente, o Ernesto bebia – bebia! – e toda essa narrativa que caminhava para um desfecho sensacional, típico padrão social, o politicamente correto, dessas em que o cidadão pensa que caga cheiroso – e eu falo do Ernesto –, por mais que os fatos nos iludam com resultados não planejados, na verdade, a vida é premeditada e tudo aquilo que sempre pensamos ser está muito distante do que é a realidade. Se eu não tivesse começado essa história teria desistido imediatamente de contá-la, mas nesse fatídico dia o Ernesto acordou com o relógio cravado as dez. - Tinha bebido um dia antes - . Quando chegou em casa na última madrugada, não resistiu e caiu de cabeça em uma garrafa de whisky. O pior de tudo, não era a sensação de desorientação e nem mesmo aquela ânsia contínua, que nunca chega as vias de fato. Ele não tinha muito mais tempo para perder e a sensação da corda sufocando a sua goela aumentava a cada minuto que se passava. Ele pegou as chaves de casa, a capa de chuva e colocou Helena nos braços. Dirigiu-se ao elevador e pacientemente esperou. Demorou um bocado a resposta. Acendeu um cigarro e ficou observando a chuva entrar pela janela e avançar o corredor. Acariciou Helena por uns instantes, nervoso, de um jeito assim bem explícito. Resolveu zarpar pelas escadas e isso não seria um problema se não estivesse acompanhado - ela era um pouco pesada, ia demorar demais para descer - quando estavam atracados, parados, a coisa rolava que era uma beleza. Helena gemia barulhos infernais. Deixava qualquer um enlouquecido. Era tudo que ele queria na vida. Depois de muito sufoco e cuidado para não machucá-la, ganhou a rua. Ele não tinha carro e o clube não ficava assim tão próximo de sua casa. Precisava de um táxi com a máxima urgência de uma grávida desesperada com a bolsa estourada em plena calçada. As horas brincavam com os restos de sua paciência. Apertou-se com Helena no banco de trás do veículo que mandaram do céu - ele não podia perder aquele trabalho - e não perdeu. Chegaram no topo da hora. A casa lotada. Gente saindo pelo ladrão. Fumaça por todos os cantos. Um clima desastrosamente apreensivo invadiu o seu peito. Todos estavam presentes. Ele e Helena dirigiram-se ao palco. A banda já estava por lá. Ele despiu sua dama. Apoiou-a em suas pernas - um calor demoníaco – e meteu a vara sem a menor cerimônia na frente de todas as caras que ansiavam o pior - nas horas de maior sufoco em que estamos equilibrados em um mísero fio de cabelo, a natureza humana sempre deseja que desgraça maior nos aconteça – mas Helena gemeu sem parar - . Ele arrancou barulhos incríveis de sua amada, deixando o público perplexo diante de tamanho êxtase proporcionado. Foi algo instantâneo, espiritual, uma explosão de harmonia – se é que você me entende - eles levaram a platéia ao delírio. Chegaram em casa pela manhã. Aos tropeços. Ele, bebaço como sempre. Ela, carregada, em silêncio. Ernesto jogou o seu violoncelo na cama, a Helena – assim ele chamava seu instrumento de trabalho – alcançou um punhado de comprimidos no criado-mudo e enfiou tudo goela abaixo com a única dose que o esperava na garrafa. Dessa vez ele apagou como a linda Monroe.


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