terça-feira, 6 de dezembro de 2011

O DESGASTE DO TEMPO NOS DENTES

Foi avisado pelo dente caído. Acordou engasgado com o molar enfraquecido na beira do abismo. Levantou num susto e cuspiu a pedra de moinho para o outro lado do quarto. O tempo acabara de marcar mais um ato. Enxugou a testa, preocupado. Caminhou aos tropeços, ainda com tosse, e abriu a janela. A madrugada continuava intacta. Mó era um sujeito pacato, que ao longo dos seus 55 anos já não insistia em superstições. Carregava as certezas nas costas pesadas e na pele amassada. Vivia só. Filho bastardo, distante de todos os outros, que aos recados, sempre se mantinham muito ocupados. Nunca havia casado, não tinha amizades e apenas cumprimentava de volta, sem amenidades. Contava os dias e os fracassos, como nas fábricas. E depois da queda do último dente, começaria a contar tudo de novo até a próxima desgraça. Lá fora, a chuva inaugurava a hora. Cuspiu um pouco de sangue e fechou a janela. Alcançou uma garrafa de vodka em cima do armário, com a intenção de assepsia, ou talvez ironia. Voltou para a cama e sentou-se de frente para o calendário. E bebeu ao passado. Varou os restos da madrugada com sua imagem desbotada na lembrança. Não assumiu nenhuma culpa. O desgaste do tempo estava evidente demais na ausência de seus fracos dentes. Com a garrafa pela metade e completamente insone, ouviu com os olhos chapados o ensurdecedor disparo do despertador. Dirigiu-se ao banheiro, sem pressa, como um ponteiro preciso e certo da próxima rodada, colocou a piroca para fora e esperou a mijada encostado. Encarou sua imagem no fundo da privada e chorou. Molhou o rosto e o cabelo. Vestiu a roupa pendurada atrás da porta. Apanhou a navalha preparada na pia, bebeu mais um gole e cortou-se. Os pulsos, os braços, o rosto. As orelhas, as pernas e o dorso. Um tremendo desastre. Ficou plantado de frente para o espelho, sorrindo. Percebeu. Seu corpo. Enfraquecer aos poucos. E em meio aos esguichos de sangue que jorravam por todos os lados, deixou nas paredes do banheiro o seu último recado.
- E agora?
Acabara de encerrar o espetáculo.


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