sexta-feira, 11 de setembro de 2009

GARGANTA IRADA

(Campainha)

Sônia – Já era hora.
Felipe – Da pizza ou do bagulho?
Sônia – Dos dois.
Felipe – Atende lá, Sônia, que eu vou botar mais uma dose.

(Sônia vai à porta. É o entregador de pizza)

Sônia – Porra, meu, já tava ligando pra cancelar.
Entregador – Desculpa, madame, é que furou o pneu da motinha. Tive que vir no maior sufoco. A coitada veio toda torta. Quase que desisto.
Felipe – (grita de dentro) Deixa de lorota, cara, tu saiu tarde de lá e agora fica inventando histórias...
Entregador – Não, senhor, é verdade, vai lá fora pro senhor ver. O pneu tá no bagaço.
Sônia – Deixa o cara, Felipe. Quanto eu te devo mesmo?
Entregador – Ô, dona, tô até com vergonha de te cobrar. (olha pro copo do Felipe) Faz o seguinte, toma a pizza. Não vou cobrar nadinha de vocês, pode deixar que eu seguro essa (entrega a pizza), mas me deixa beber um pouco desse troço, vai, esse luxo não faz parte da minha vida.

(Sônia olha pra Felipe que concorda)

Sônia – Beleza. Dá um copo aí pra ele Felipe.
(O entregador entra)
Felipe – Toma, cara. Sexta-feira deve ser o terror.
Entregador – Um pedido atrás do outro. E o patrão sempre no pé, filho da puta... não posso dar um vacilo, sabe como é...
Felipe - Manda ver que tu deve tá na maior secura.
Entregador – Tô mermo, irmão. Hoje é sexta-cheira (ele ri) e mais tarde tem show dos Periféricos Aloprados.
Sônia – Porra, tu curte irmão?
Entregador – Eu sou o roadie da banda, chegado.
Felipe – Sério mesmo?
Entregador – Sério, meu irmão. Bota fé.
Sônia – O que é um roadie?
Felipe – Não acredito...
Sônia – Porra, Lipe, não sei e daí?
Entregador – Que nada, olha, eu sou o cara que monta o palco pros músicos, sabe? Afino guitarra, baixo, monto a bateria, essas coisas. Às vezes até passo as músicas com os outros músicos pra poupar o vocal.
Sônia – Ah, mas isso é a maior frescura.
Felipe – Que mané frescura. O cara tem que tá legal pra detonar na hora do show.
Sônia – Frescura sim. Assim que começa com a porra do estrelismo. Primeiro não passa a música pra poupar a voz e depois tá fazendo show só se tiver água Perrier no camarim. Sem falar do playback. Ah, deixa disso, Felipe, tá se contradizendo, depois fica com esse discurso persuasivo das concessões. E isso também não é uma concessão?
Felipe – Pode até ser, mas...
Entregador – Que papo é esse de concessões?
Sônia – É que o Felipe é o tipo de cara politicamente correto, sabe? Ou pelo menos pensa que é. Ele prefere morrer de fome do que ceder pra uma editora qualquer. O cara faz altos desenhos, mas ninguém quer mais saber dos traços dele.
Felipe – (tenta disfarçar) Ei, o cara é um estranho. Vai lavar roupa suja assim é?
Sônia – (alterada) Que estranho nada, já tomou com a gente, não é mais estranho (ri). Você não concorda?
Felipe – Claro que ele vai concordar. Porra, o cara entrega pizza de dia e de madruga é roadie de banda. Deixe-me adivinhar, o sonho dele é trabalhar só com música. Acertei? Claro que ele vai concordar contigo, trabalhar na pizzaria é uma concessão.
Entregador – Nada disso, mano, é necessidade mesmo.
Felipe – Concessão!
Entregador – (irritado) Qual é meu?
Felipe – Qual é o caralho!
Sônia – Êpa, calma lá seu machinhos.
Entregador – Cara, eu não vou ficar lá por muito tempo, sacou? Tô juntando uma grana pra comprar uma batera. Tem uns malucos aí que eu conheço que tão fazendo o mesmo e então nós vamos montar nossa própria banda. Aí eu quero ver você me tirar. Vou tá lá, ó, arrebentando. (grita) Rock’n Roll, baby! O público gritando meu nome e eu só bebendo esse luxo maltado que tu tá me servindo. Vou rezistrar meu nome no hall da fama!

(Felipe olha pra Sônia. Os dois caem na gargalhada)

Entregador – (puxa um canivete do bolso) Qual foi? Iii, tão me tirando é? O que foi que eu falei?
Sônia – Que isso, carinha, deixa disso, não é nada, guarda esse troço aí... é que o...
Felipe – Porra, meu, nada? Agora imagina só, nesse exato momento o personagem da minha HQ conversa com o entregador de pizza, que num ato impensado pronuncia a palavra rezistro. Sem que ele perceba, meu personagem abre uma boca imensa e de uma só vez dá uma mordida na cabeça do entregador de pizza. O próximo quadrinho aparece o entregador sem a cabeça.
Sônia – Tu é um maluco...
Entregador – (nervoso) Cara, qual foi? Que porra é essa de comer minha cabeça? Vou começar a distribuir porrada nessa caralha!
(Sônia ri)

Felipe – E de repente o super-herói cospe a cabeça do entregador de pizza de volta, que repete várias vezes a palavra registro. Que é o certo. E não rezistro como dizem por aí.
Entregador – Rezistro, registro, mas não é tudo a mesma coisa?
Felipe – Tudo a mesma coisa é um caminhão cheio de japonês.
Sônia – Não esquenta não, essa é a história do personagem dele. Hoje já discutimos muito por causa disso.
Entregador – Quer dizer que o cara engole a cabeça de quem fala errado?
Felipe – Isso mesmo, e depois cospe de volta e o cara repete várias vezes a palavra de forma correta?
Entregador – É...eu te confesso que a idéia é bacana. É educativa.
Felipe – Ta vendo aí, sua canastrona!
Sônia – Não acredito que tu arrumou um aliado.
Felipe – Aliado não, um leitor inteligente.
Entregador – Se tu me der mais um gole eu até ouço o resto da história.
Sônia – Isso é outra concessão.
(eles se olham e riem. A campainha toca)
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