sábado, 28 de novembro de 2009

APENAS UM BLUES E UMA PAREDE PICHADA


FREEEu adoro isso aqui. Adoro o cheiro do spray, o barulho que ele faz quando eu o sacudo, o meu dedo dolorido de tanto apertar. Comecei a pichar muro com 15 anos. Primeiro pichei todo o meu quarto. Anos mais tarde, quando meu pai começou com a idéia de fazer meus quadros de bandeja passei a pichar os muros lá de casa. Adorava tomar café da manhã em família, só pra ouvir o coroa revoltado da vida. Ele pintava, e eu pichava. Era o maior barato. Tinha épocas que ele ficava vigiando pra tentar pegar o pichador. Eu sentia o maior prazer de chegar perto e perguntar – e aí, será que ele vem hoje? E então meu pai dizia, - se ele aparecer, eu o mato! Agressivo, não? Mas eu adorava. Uma vez, cheguei da escola e vi um quadro meu na lata de lixo da rua. Já tava todo manchado de cerveja. Só podia ser um recado, sabe, - aí, segue a tua obra. Apelou, Black. Fui no esconderijo das latas de tinta. Peguei dois sprays. Preto e vermelho sangue. Tava sozinha. Pichei todo o muro interno da casa. Fiz um monte de desenhos cheios de picas e bucetas, gente se pegando...
BLACK - Um Keith Haring desesperado vomitando todo o seu giz no buraco do metrô de NY...
FREE -... nem tanto, mas o suficiente pro meu pai quase bater o pino. Agora você entende porque eu não posso voltar mais pra lá? (faz referência ao desenho, mas Black não o vê) Tá vendo aqui? Eles acham que isso é maluquice! Quem são eles pra arriscarem definições de maluquice? Então quer dizer que louco é aquele que faz o que o outro é louco pra fazer e não faz? Sou louca sim, e daí?
(pausa)
BLACK (Black imita a sua mãe) Você é louca! Com essa idade, o que vão pensar da nossa família? Você estragou tudo! (pausa) Quando eu disse que tava grávida, minha mãe sentou a mão na minha cara.
(pausa. Free olha para a amiga).
FREEVocê não me disse isso.
BLACKNão queria que você ficasse preocupada. Ela insistia em saber quem era o pai. Repetia pra todo mundo em casa que eu precisava casar imediatamente. Meu pai sempre foi mais sossegado. Não sei o que era pior, as surras da minha mãe ou a ausência física, mesmo que violenta do meu pai. Foi interrogatório a noite toda. Os vizinhos apareceram lá em casa pra saber se estava tudo bem. Carniceiros... queriam arrancar a minha pele ainda viva, isso sim. Precisavam saber de todos os detalhes. Eu lá, no meio da sala. Sentada em uma cadeira com aquela platéia à minha frente. Minha mãe era a única que me rodeava, como um delegado desanimado de fim de carreira. Só ela não parava sossegada. Me rodeava e em seguida berrava querendo saber quem era o pai. E os vizinhos não saíam da porta de casa. Eu me descontrolei com todo aquela cena, corri pra janela e gritei pra todo mundo ouvir, - EU NÃO SOU MAIS VIRGEM! EU VOU TER UM FILHO SOLTEIRA! AGORA VOLTEM PRAS SUAS VIDAS MEDÍOCRES, SEUS FILHOS DA PUTA! Minha mãe me arrancou pelos cabelos e me colocou de volta na cadeira. Meu pai a chamou no canto e apenas sussurrou em seu ouvido. Ela resistiu, mas ele disse o nome dela uma única vez. Me colocaram pra dormir. Aí o resto da história você já conhece. Me tiraram da escola, não deixaram mais eu sair na rua sozinha, me proibiram até de usar o telefone lá de casa. Se não fosse você...
FREE Eu sabia que a barra tava pesada pra você, mas não sabia que rolava agressão física.
BLACK Mas agora já passou. E tem muito mais pra passar.
FREE O vinho tá acabando.
BLACK – E o nosso tempo também...





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