domingo, 27 de abril de 2008

A DOR DE SER DIFERENTE


Flávia saiu cambaleando pela rua em direção à Kombi estacionada em frente ao bar. Encostou-se no veículo. Abaixou a calcinha e mijou toda a cerveja que tinha bebido aquela noite. Quando bebia tinha a mania de prender a urina. Ia até as últimas conseqüências. Como em sua vida. E acabava fazendo em qualquer lugar.
- Pôrra, por que é que só homem pode mijar na rua, caralho?! – disse e olhou para um cabeludo que estava urinando mais ao lado.
- Isso mesmo, gata! – disse o cabeludo. – direitos iguais...
Flávia deu uma escorregada na hora de levantar a calcinha. Apareceu a bunda. O cabeludo a encarou. Por mais moderninha que fosse aquela cena, homem é homem.
- Quer uma mãozinha? - disse ele segurando no seu membro. Aos tropeços, Flávia levantou-se sozinha.
- Lugar onde se mija é sagrado. – saiu resmungando alto – pode até ser coletivo, mas cada um que olhe pro seu!
Voltou ao bar. A perna ainda trazia vestígios de sua escapada. Sentou-se à mesa. Os amigos bebiam e comemoravam o final de mais um semestre. Mas tudo era chato. Uma repetição. Tudo era normal demais. Duas cartelas de calmantes e uma dose dupla de 12 anos talvez fossem a solução.
Flávia era uma mulher diferente das outras. Vestia-se diferente. Ousava nas cores como um Almodóvar alucinado. Suas roupas eram feitas por ela mesma. Sobreposições de peças garimpadas nos brechós escondidos em Santa Tereza. As mulheres tinham inveja. Ela era destaque em qualquer situação.
O cabeludo, parceiro de urina, estava encostado na porta do bar com uma lata de cerveja na mão. E não tirava os olhos dela. Era universitário também. Vestia-se com uma blusa hippie amarela, calça jeans e tênis branco. Foi ao balcão.
- Me vê mais uma lata, aí... – disse ao balconista.
Foi na direção de Flávia. Ela já estava bastante alta. E enquanto seus amigos repetiam os mesmos assuntos, Flávia tinha o olhar perdido no meio da multidão. Talvez estivesse pensando na combinação comprimido e 12 anos.
- Me acompanha? – disse ele. Ela apenas o olhou.
- Vai, tá geladinha. – insistiu – vai me deixar com a lata na mão?
Ela tornou a olhá-lo. Levantou-se. Foi em direção ao balcão e pediu duas latas de cerveja. Voltou ao cabeludo.
- E aí, se sente melhor agora? – disse, mostrando também ter duas latas de cerveja nas mãos.
O cabeludo deu uma gargalhada. Virou uma de suas latas inteira. Ela repetiu o gesto.
- Me lembro de você. – disse ela – tava me olhando mijar lá na Kombi. Você é um pervertido, sabia?
- Quando você chegou eu já tava mijando.
– disse ele – então...
- Te enxerga, cara! – disse debochando dele – você acha que eu encontrei minha buceta no lixo?
- No lixo não, mas tava quase esfregando ela no chão. – ele ri.
Ela imediatamente agarra o seu saco. Aperta. E ele grita como se estivesse dando à luz.
- Filha da puta! – ele diz – você é louca!
Ele se senta no chão. O bar inteiro entrou em choque. Um choque coletivo. Por uns instantes somente dava para se ouvir um coração pulsando dentro do bar. O dela. Ele caído. Ela pediu uma dose de vodka. Acendeu um cigarro e cambaleando foi jogar dardos.
Um playboy de cabelos lisos, estilo bico de pato, estatura mediana, ficou ao lado da tabela de dardos observando-a jogar.
- Gostei... – disse – mulher pra mim tem que ser desse nível.
Flávia ficou calada. Continuou a jogar.
- Uma vez namorei uma mulher parecida com você. – disse ele.
Ela estava com os dardos nas mãos e quando ele terminou de dizer que existia uma mulher parecida com ela, Flávia não pensou duas vezes e arremessou os três dardos de uma só vez. Um foi no olho esquerdo. Outro acertou o ombro direito. E um outro raspou-lhe a cabeça e foi parar em uma mesa próxima.
- Filha da puta! – ele disse – você é louca!
Algumas pessoas se aproximaram do cara e o acudiram. Ela foi ao balcão.
- Parecida comigo... – resmungou.
Pediu outra dose de vodka e empurrou tudo para dentro. Acendeu um cigarro. Foi para o canto dançar. Wish you were here. Ela balançou os braços completamente livres. Só queria ficar na dela. Até seu jeito de dançar era diferente dos outros. Era como se o vento se encarregasse de levar aquele corpo.
Um negro com cabelos rastafari, Bob Marley estampado na blusa e fumando um cigarro de palha se aproximou.
- Vai um tapa? - disse, oferecendo o cigarro.
- Não rola...
- Mas esse aqui você vai curtir...
Flávia estava muito bêbada, mas não curtia outros tipos de drogas. Na verdade detestava qualquer coisa que não tivesse o cheiro do álcool. Gostava mesmo do cheiro, do gosto, da cor. Mas não curtia outros baratos.
- Tô curtindo seu estilo de dançar. – disse o negão querendo intimidade.
- Não quero companhia. – disse Flávia.
- Deixa disso, gata. Vem cá... – puxou-a pelo braço com força. No caminho, ela sacou uma garrafa de cerveja de uma mesa próxima e deu-lhe uma garrafada. Voou vidro para todos os lados. O negão caiu por cima de uma mesa. Sua cabeça jorrava sangue.
- Filha da puta! – ele disse – você é louca!
Flávia foi em direção à mesa dos amigos da faculdade. Parou ao lado. Apenas observou.
- Vocês viram o vestido da Angelina Jolie no Oscar? – disse uma das amigas.
- O que foi aquilo, hein? – disse outra amiga deslumbrada.
- Gente, nós temos que fazer coisas assim aqui na facul, isso é que dá futuro. – concluiu outra.
Tudo era chato. Uma repetição. Normal demais. Pegou um copo de cerveja de alguém. Virou tudo. E foi para casa cambaleando na dor de ser diferente.
Abriu a porta do apartamento. Arrancou uma garrafa de 12 anos da estante. Entrou no banheiro dos pais. Eles estavam viajando. Vasculhou o armário da mãe. Pegou duas cartelas de um calmante qualquer e saiu. Ligou o som na sala. Wish you were here. Apagou.





Um comentário:

Marcelo Perez disse...

ÔPA! CHEGOU ATÉ AQUI? VIU COMO NÃO FOI DIFÍCIL? ENTÃO AGORA VAMOS CONVERSAR...