sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

GARGANTA IRADA


(A cena acontece em um pequeno apartamento, de quarto, sala, cozinha e banheiro, todos integrados. Felipe entra em casa. Sônia está sentada à frente do computador, na sala. Eles são jornalistas. Ela é tenta ser uma escritora nas horas vagas. Ele é um desenhista. Ela faz uma revisão em seu romance. Ele vai à cozinha, abre a geladeira e pega uma garrafa de água).

Felipe – Calor filho da puta! (bebe a água) Esse ventilador de merda não contribui em nada, já cansei de dizer que a gente precisa de uma central. (bebe mais água) Quer saber? Nós vamos é queimar nesse inferno!
(Pausa)
Felipe – (apanha uma laranja e começa a descascá-la) Como é que você consegue se concentrar com esse calor? Quando o tempo tá assim eu não consigo acertar um traço. Tomo uns dez banhos pra conseguir finalizar algum desenho. Tô até imaginando como deve tá esse livro...
Sônia – Continua desempregado...
Felipe – O quê?
Sônia – Eu disse que você continua desempregado, por isso que tá assim azedo. A entrevista deve ter sido uma bosta. De novo.
Felipe – Foi sim. A mesma chatice de sempre. Uma entrevistadora deliciosa, com um puta de um rabo imenso e que pernocas lisas, super provocante, colocada na posição ideal pra distrair desenhistas e autores tarados como eu. Um pessoal descoladinho na editora, cheios de explicações enfurnadas num monte de mentiras teóricas, tudo daquele jeito pra afastar profissionais como eu. Como sempre os meus desenhos não se enquadram no mercado atual. Que se dane o mercado! Esses editores são umas cobras. Eles pensam que eu não sei que são eles que criam o mercado. Na maioria das vezes o povo lê o que eles querem. Investem tubos de dinheiro em livros que não contribuem em nada com a nossa cultura e depois dizem que estão com a corda no pescoço, aliás, nunca vi um editor dizer que não tá com a corda no pescoço. Eles deviam é ler os livros de auto-ajuda que eles mesmos publicam.
Sônia – Você tá corretíssimo. Eles não querem mesmo vender você. Pelo menos, não esse Felipe.
Felipe – Como é que é?
Sônia - Felipe, o lance agora é mangá, entendeu? Esses seus traços são bacanas, olha, você sabe que ninguém mais do que eu adoro seu trabalho. Porra, cara, sou sua fã de carteirinha, mas... cai na real, o que tu faz hoje, não vende. E esses caras só pensam em números.
Felipe – São frios. Uns matemáticos filhos da puta, isso sim. Como é que eles conseguem convencer tanta gente? (mostra seu book) Olha aqui, ó, aqui tem alta temperatura. As páginas queimam, tá ligada? Foda-se esses traços de mangá. Umas merdas de uns japoneses que eles nos empurraram pela goela. Filhotes da tv aberta. Isso é o que são. Se não fossem esses programas de tv, esses desenhos não teriam tanta banca assim.
Sônia – E daí, cara, tu acha que o Walt Disney se deu bem porquê?
Felipe – Não fala besteira...
Sônia – É mesmo. Se não fossem esses programinhas merdas...
Felipe – Desculpa te cortar, mas tá falando bobagem. Muito antes desses programinhas passarem os desenhos do Disney, o cinema já apresentava a sua obra. E pro mundo todo. Porra, você há de convir que é uma apresentação muito mais nobre. Cinema! Show da Xuxa é sacanagem...
Sônia – Tá legal, mas nada disso vai resolver o teu problema, vai? Tá desempregado. Os caras não querem saber dos seus desenhos. Muda, Lipe. Não se deixa virar uma vítima desses putos.
Felipe – Aceitar o jogo é assumir o papel de vítima, isso sim. Deixa quieto. Vou dar meu jeito. Como sempre fiz.
Sônia – Tomara que esteja certo. E que ainda tenha tempo pra... sei lá, fazer com que o seu jeito funcione. Tu é um sonhador!
Felipe – Isso mesmo, um idealista.
Sônia – Na sociedade moderna não existe mais espaço pra idealismos. Ninguém tá com vontade de defender porra nenhuma. Cada um de olho no seu buraco. As pessoas só se juntam pra usar umas as outras. Idealismo...
Felipe – Por isso que estamos assim, entulhados de merda até o pescoço.
Sônia – E de terra...
Felipe - O mundo tá derretendo aos poucos, tragédias naturais invadem as nossas casas, chamam a nossa atenção pra antecipação do fim e o que o povo faz? Nada! Todo mundo chora na hora do Jornal Nacional, e depois secam as lágrimas à beira das fogueiras de lixo no fundo dos quintais.
Sônia – Você precisa se enquadrar, Lipe, nem tanto ao céu e nem tanto ao inferno.
Felipe – Prefiro o inferno das tentativas impossíveis, do que o céu da acomodação dos dias iguais. Eu fico com o meu idealismo. Ainda acredito em algumas verdades, Sônia, mesmo que tolas, mas prefiro apostar no que eu acredito.
(Felipe abre um pacote de batatas chips, uma lata de refrigerante e uma lata de Nescau. Acende um cigarro e deixa – o no cinzeiro. Liga o som. Senta no sofá).
Sônia – Hiii, já vi tudo. Mais dois dias entrevado nesse sofá. Cara, reage!
(silêncio)
Sônia – Tá legal. Não vou alimentar tua paranóia...
Felipe – Já te disse. Deixa quieto.
(Pausa)
Felipe – Eu também sempre fui seu fã de carteirinha...
Sônia – O quê?
Felipe – Eu tô dizendo que eu também sempre fui seu fã de carteirinha.
Sônia – Fui?
Felipe – Isso mesmo. Não faz nem dez minutos que eu não sou mais.
Sônia – (Negritori) Qual é a tua? Não tô entendendo.
Felipe – É que eu não sabia que você era do tipo que fazia concessões.
Sônia – Ainda não tô entendendo.
Felipe – Porra, Sônia, o que é que não tá claro? Esse seu livro aí deve tá cheio de censura. Cheio de concessões.
Sônia – Ah, então é isso?
Felipe – Me diz então que eu não tô certo? Já faz mais de duas semanas que você revisa essa merda. No mínimo tá moldando pra esses babacas da tua editora.
Sônia – Tô sim, Felipe, e se eu não fizer isso os caras não publicam. Consequentemente, eu não me visto, eu não como, eu não me lo-co-mo-vo. Sacou? E além do mais, o que eles pedem pra alterar não é nada demais assim.
Felipe – Nada demais? Então quer dizer que você tem uma puta de uma ideia, du caralho mesmo, demora um tempão matutando essa porra nessa cabeça desmiolada, leva mais não sei quanto tempo até tomar coragem de vomitá-la nos teclados do teu computador, sem contar o drama da página em branco e na hora de publicar você resolve fazer umas mudancinhas e ainda me diz com a maior cara lavada que não é nada demais? Vou te dizer uma coisa, daqui a pouco tu vai me dizer que livro de auto-ajuda é o maior barato! Parei contigo.
Sônia – Nem tanto, né.
Felipe – Não duvido de mais nada. Olha, experimenta bater de frente com esses capitalistas nojentos. Persiste nas suas ideias. Não deixa que eles escrevam esse livro com você. É assim que vou me sentir se eu começar a fazer essas mangás. Entendeu agora? Quando eu olho pra esses traços aqui, (mostra o book) eu tenho certeza de que fui eu quem os fez. Sozinho. Sem imposições. Mas se eu começar a apelar pros japoneses...você não entende....
Sônia – Entendo sim. Somos pessoas diferentes. Temos necessidades diferentes. Olha pra você. Faz uns bicos pelas redações da cidade. É bom pra caralho no que faz, mas não consegue, quer dizer, não quer ficar preso a nenhum jornal ou revista. Cara, olha pra tuas roupas. Se eu te recebesse pra uma entrevista de emprego, com certeza também não te contrataria. Parece até que saiu do túnel do tempo. Pura década de 80! Você anda largado demais, Lipe. Quem já te conhece e não liga pra essa tua estampa, você não tá afim, não é mesmo? E seu eu for falar das contas... nos últimos meses fui eu quem chegou junto. Aquele meu empreguinho de merda, como você sempre diz, jornalista de madame, ele sim é que tá segurando a nossa onda.
Felipe – Legal. Joga na cara essa porra toda. Vocês, capitalistas, têm a mania de encerrar suas discussões com cifrões enfiados no nosso rabo. Ei, quer que eu vá embora? É, porque se tá incomodada com tudo isso, eu vou. Numa boa.
Sônia – Não é nada disso, paranóico. A gente já mora junto desde a época da facul. Eu resolvi seguir a profissão e nas horas vagas tentar meu sonho de ser escritora. Você não. Você decidiu seguir o outro caminho, desenha todos os dias e nas horas vagas arruma algum como jornalista. Fazer o quê? De qualquer forma, nós estamos nessa juntos. Não liga muito pra essas coisas que eu falo. Olha, eu tô preocupada com o meu prazo que tá se esgotando. Preciso terminar essa revisão até a semana que vem, e enquanto eu não der o original pra editora, eles não me pagam o restante. E ainda tenho que escrever a matéria sobre filtro solar pra cachorros. (ele ri) É, meu amigo, vida de jornalista de madame, como você bem disse. Essa eu preciso entregar na segunda, sem falta. De outro jeito, tô demitida. Tá tudo muito complicado, Lipe, e eu não tô nenhuma vontade de prolongar essa discussão. Vamos fazer o seguinte, vamos pedir uma pizza?








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