quinta-feira, 12 de junho de 2008

BOTERO V


Batidas descompassadas interromperam o silêncio da madrugada. Três horas. Morava numa rua sem saída. No topo. Era a última casa. Ao lado de uma escola depredada e abandonada. Acendeu o abajur. Não era sonho. Colocou um casaco e olhou na fresta da cortina do quarto. Escuridão total. Com o gerador desligado só era possível seguir com a luz da lua e dos vaga-lumes agitados. As batidas continuaram. Olhou para a casa dos vizinhos e não viu ninguém. Mas sabia que as frestas das cortinas estavam cheias de olhos naquele instante. Medrosos. Resolveu descer. As batidas eram enlouquecedoras. Abriu a porta devagar. Olhou pelos cantos. Viu uma figura transtornada, afogada em lágrimas. Ficou imóvel. A mulher começou a falar com a língua enrolada. Um desafio para qualquer pesquisador de lingüística da terra. Era impossível. Ela tentou descobrir o que a desesperada queria, mas era interrompida pela fala enrolada, chorosa e alucinada daquela mulher.
- a senhora quer um copo d'água? O que foi, quer que eu chame a polícia? Terminou de oferecer e em seguida a mulher arregalou os olhos e ela entendeu que a polícia não deveria ser uma boa idéia. A mulher segurou em suas mãos e com piedade continuou a emitir sons e palavras esquisitas.
- pop..por..fav..favr...fav..or... tentou em vão se comunicar. A dona da casa já não sabia mais o que fazer. Encostou a porta. Foi até a mesinha da sala. Pegou uma nota de dez reais e retornou. A mulher chorosa repetia a mesma fala esquisita. Sua ouvinte da madrugada lhe estendeu a nota. A mulher enxugou as lágrimas. Pegou-a. Sentou na calçada. Tirou de dentro do vestido um saco. Despejou tudo nas mãos. Enrolou a nota de dez reais e a usou como canudo para cheira todo o pó. Levantou-se agitada. Devolveu a nota.
-brigadão! Valeu! Na moral! Disse e saiu descendo a rua quase rolando com suas pernas descontroladas.








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